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Confidencio a vocês que
aquele foi um dia que me pegou de surpresa. Mas não se tratava de uma surpresa
boa, que desperta sorrisos, esperanças. Entenda mais uma coisa a meu respeito,
meu caro leitor, na vida de uma psicopata as surpresas chegam para nos fazerem
pensar.
Deixei a medicação fluir e
tomar conta do corpo de Phillip e saí de casa para começar meu primeiro dia de
trabalho. Fora convidada a ministrar aulas e dar continuidade às minhas
pesquisas na Universidade da capital.
A capital de meu estado era
bem próxima de minha cidade, e não demorou mais que vinte minutos de carro para
que eu já estivesse dentro do campus.
Para a maioria das pessoas,
aquele seria um grande dia, com novas pessoas a conhecer, muitas oportunidades
para chegar e, principalmente, muita vontade de começar um novo futuro em um
lugar tão estruturado e com um potencial imensurável. Mas, obviamente, eu não
me sentia desta forma.
Na realidade, eu me sentia
exatamente da mesma forma todos os dias. Acordava, alongava-me, e fazia o meu
rotineiro percurso de corrida. Depois, café da manhã, trabalho, almoço e
pesquisas, tudo exatamente na mesma ordem. Depois, descansar, ou quando isso
não era possível, como, por exemplo, quando estava morando em algum lugar com
guerra civil, continuava trabalhando e operando todos aqueles que precisassem.
De vez em quando aparecia
alguma diversão, alguma pessoa pedindo para morrer, ou para ser enganada (o que
para mim era a mesma coisa, pois começa-se o assassinato muito antes de se
tocar a arma fatal), mas quase sempre o dia era o mesmo.
Não existe muita distração
para quem tem o desejo de sangue dentro de seu corpo. Nada me interessava, e o
vazio que acalmava meus pensamentos, era o mesmo que me corroia diariamente. O
ser humano, para se manter vivo, precisa sentir prazer. E o meu, só vinha
através de duas coisas que estão, ao meu ver, intimamente ligadas: curiosidade
e morte.
Portanto, não preciso aqui
relatar detalhes sobre a minha aula naquela manhã. Basta apenas resumir a
leitura de vocês dizendo que fora exatamente como o esperado. Ao final da aula,
recebi inúmeros cumprimentos, elogios, e até mesmo um caixa de bombons, tudo
pelo trabalho que desempenhei durante o ano que morei na África. Todos me
olhavam com ternura, sentindo que o mundo ainda podia ser um lugar bom, pois
havia pessoas como eu, dispostas a fazer tudo melhorar.
O que aqueles tolos não
sabiam é que eu não era metade daquilo que eles imaginavam, e que a maioria dos
lugares em que estive, principalmente aqueles com guerra civil, fora meu pai o
maior financiador de todo o movimento. Eu era, ao final, apenas uma boa e velha
humana, assim como eles, que suja a própria sala e varre a sujeira para debaixo
de seu tapete. E pisa nele com fervor depois.
Saí da sala de aula sorrindo,
pensando a respeito de tantas sujeiras que já havia varrido para debaixo do
tapete, e em como era boa a sensação de mantê-las escondidas por todo aquele
tempo.
E então, a poucos centímetros
de mim estava o homem mais bonito que já vira em toda minha vida.
Encarei-o com discrição, e
pude perceber que carregava um buquê de flores coloridas em suas mãos, e que
sua calça jeans estava larga demais para uma pessoa do porte físico como o
dele.
- Dra. Marina Shadda? – disse
ele, aproximando-se ainda mais de mim. Ali, de perto, vi que em seu peito havia
broches de condecorações.
- Sim, pois não? –
respondi-lhe cordialmente.
- Eu comprei estas flores
para você. Espero que lhe agrade. – o rapaz parecia ter ensaiado inúmeras vezes
aquele diálogo comigo, e pelo modo como ele me olhava naquele momento, poderia
afirmar que ele não conseguira falar como ele gostaria.
- São lindas! Muito obrigada!
Mas por que mereço um presente tão especial assim? – fixei os olhos no gracioso
buquê.
- É... – sim, estava certa, o
rapaz estava realmente muito nervoso. – Dra., é... Oficial Marco! Ao seu
dispor! – disse – me, batendo continência, enquanto me entregava as flores. –
Esperei exatamente um ano por este dia. Preciso muito lhe agradecer. Você,
hã... Perdão, a Doutora, foi quem amputou a minha perna direita.
Só então pude entender o
motivo pelo qual ele usava calças tão largas. Ele com certeza estava vestindo
suas calças sozinho, e ainda não estava habituado àquele ofício, portanto
calças largas seriam mais fáceis de se vestir. Gastei alguns segundos neste
devaneio, até que me lembrei de que ele acabara de me contar que perdera sua
perna direita, e que fora eu a pessoa que a cortara fora. Para sempre.
- Você é aquele... ? – comecei
a indagação, mas fui interrompida.
- Sim, Dra. Sou eu. Você não
deve estar se lembrando de mim porque...
Sim, eu não estava me
lembrando dele, pois quando o encontrei, no meio de uma mata bem rala, ele mais
se assemelhava a uma colcha de retalhos do que a um ser humano.
Mas como poderia esquecer
aquela cena? Era a minha terceira vez na África, e o meu primeiro dia no
acampamento. Todos saíram em busca de um oficial perdido, e inclusive os
médicos e enfermeiras foram atrás de seu paradeiro. Oficial Marco era o mais
eficiente de todos, não tinha família, nem esposa, vivia, desde os seus dezoito
anos, a serviço da humanidade.
Claramente, por ironia do
destino, eu fui a escolhida para encontra-lo semimorto e trazê-lo de volta à
vida. Confesso que não foi fácil, meus caros. Aquele homem estava em uma
situação deplorável. Todavia, foi aquele breve suspiro de vida que ainda
existia em sua respiração que fez com que eu me sentisse desafiada, e então,
comecei a fazer o que sabia melhor: cortar, costurar e consertar.
- Você estava tão calma, e
mesmo quando eu estava agonizando de dor, me sentia feliz em ouvir você
dizer que eu sairia dali andando. Que eu voltaria a praticar esportes. Que eu
seria pai de uma linda menina. – ao me recordar da cena, não prestei atenção em
tudo que ele me falava, e só conseguia ouvir alguns trechos do que parecia ser
uma declaração de gratidão.
- Eu me lembro, você me dizia
que gostava de praticar esportes radicais.
- Infelizmente, não consigo
ainda, Doutora, mas já estou andando de stand-up.
– ele parecia bastante orgulhoso de sua conquista.
- Mesmo?! – quis parecer
surpresa, mas já havia conhecido inúmeras pessoas naquela mesma situação que
também levavam uma vida normal. Ele não me surpreendia, mas era bonito demais
para que eu pudesse desapontá-lo naquele momento.
- Sim. Eu... Me perdoe por
lhe dizer isso, Doutora, mas não consigo parar de pensar em você desde quando
abri os olhos depois de minha cirurgia. Sei que você faz isso com todos os seus
pacientes, mas eu sei que só sobrevivi por sua ajuda. Todas aquelas palavras em
um momento tão difícil para mim, você me fez sentir em paz... Era como se não
precisasse temer por minha vida, como se você realmente tivesse o controle de
quem iria viver, e de quem iria morrer naquela noite.
- Eu apenas fiz o meu melhor,
Oficial Marco.
- Não, você não fez apenas o
seu melhor, Dra. Shadda. Você doou sua alma naquele momento. Você me deu a sua
melhor parte para que eu pudesse ter uma segunda chance. E eu quero agradecê-la
por isso.
Ele com certeza não devia se
lembrar, mas eu jamais me esqueceria. Estava começando a escurecer, e vocês não
podem acreditar em como o Sol se põe de uma vez quando precisamos de sua
claridade.
Estava tentando voltar para o
acampamento, estava perdida de meu companheiro de busca, e minha lanterna
parecia estar falhando. Foi quando o encontrei. Tentei acalma-lo, mas não
demorou muito para que a minha lanterna apagasse e o desespero tomasse conta
dele.
Ao buscar seus sinais vitais,
consegui fazer contato pelo transmissor e pedi ajuda. Apalpava seu corpo com
cuidado em busca de novos ferimentos, até que senti sua perna.
Enquanto conversava com ele
sobre sua vida, tentando distraí-lo, toquei-lhe a perna, que estava gelada como
o inverno, e percebi que não havia mais vida ali. Sabia que se demorasse muito
a chegar o socorro, ele morreria.
Deitei-me atrás de seu corpo,
e abracei-o com gentileza, o que parecia ser uma tentativa de manter-lhe
aquecido até que nossos colegas chegassem. Mas eu não estava fazendo isso, meu
leitor. Eu o abraçara e acariciara os seus cabelos, pois gostava de sentir de
perto o esvaziamento da vida, aquele breve minuto onde o corpo se entrega e
respira pela última vez. Apenas isso. E foi então que o socorro chegou.
Lembro-me
que a estrutura era pouca, e não tínhamos materiais de esterilização
suficientes para desinfetar o corpo inteiro, portanto, desinfetei apenas a
perna, e a amputei com precisão, sendo aplaudida ao final da cirurgia.
Um helicóptero chegou horas depois
e o levou embora. Achei que ele não sobreviveria, mas ali estava a prova de que
quando um trabalho é feito com perfeição e limpeza, os resultados são sempre os
melhores.
Continuamos conversando, e
quando olhei em meu relógio, vi que já havia se passado meu horário de almoço,
e que deveria voltar para continuar dando aulas.
- Perdoe-me, Doutora, não
queria ter tomado tanto seu tempo.
- Imagine, Marco, será que já
posso chama-lo assim?
- Mas é claro.
- Foi um prazer, e uma enorme
alegria saber que você está tão bem.
- O prazer foi meu, Dra., em
ter passado por suas mãos e poder estar aqui hoje, em pé, com vida, e poder
revê-la. Não trocaria este momento por nada.
- E se eu o convidasse para
tomar um café comigo? Você aceitaria, ou acharia impróprio uma médica convidar
seu antigo paciente para um encontro? – sorri maliciosamente ao dizer aquelas
palavras.
- O seu convite é uma ordem
para mim, Dra. Ou será que posso chama-la de Marina?
- Por enquanto “Dra.” para
você está bom, Marco. Depois de nosso café eu lhe digo se poderá ou não me
chamar pelo primeiro nome. Aqui está meu cartão com o meu telefone. Espero a
sua ligação.
Se você, neste momento, se
sentiu empolgado pelo fato de uma pessoa aparentemente do bem estar entrando em
minha vida, peço que não se esqueça sobre quem você está lendo, sobre minha
real identidade. Continuem focados no fato de que nunca há esperança para
aquele que nasceu corrompido pela psicopatia.
E sempre, quando algo de bom
aparecer por aqui, é porque com certeza ele estava na hora e no lugar errado.
Marco foi um deles.
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