Não era apenas a vida de Marrie que estava em minhas mãos.
Eu sabia que ali, em meio a todo aqueles fios de cabelos esparramados pelo chão, também
estava minha vida. Os meus anos passados, os meus anos que estariam por vir, todo e cada
segundo vivido e por viver dependeriam daquela cirurgia. Porque a pessoa que
estava deitada, desmaiada naquela cama, era a única parte boa que
ainda existia em mim. E eu não permitiria que ela fosse embora. Era egoísta
demais para deixar Marrie partir.
Nunca tive crença alguma além da Medicina, sempre frequentei
às missas aos domingos para cumprir minha obrigação perante a sociedade, e
desde que chegara àquele novo lugar, onde não precisava mais ser o “Doutor-Anjo”,
nunca mais fingira fazer uma oração.
Mas depois de conhecer Marrie, em uma coisa eu acreditava
com todas as minhas forças: que a vida nos dava segundas chances. E esta é uma
história de segundas chances, meu caro leitor.
Eu não tremi quando comecei a operar Marrie. Se em algum dia eu fora realmente o melhor médico do país, se eu já salvara milhares de vidas, naquele momento eu precisava provar para mim mesmo que eu não carregara tal título por tantos anos em vão.
E mantive minhas mãos firmes naquele momento porque sabia que Marrie contava comigo. E já se passara mais de 10 anos desde a última decepção que eu lhe dera. Não seria aquele o dia em que voltaria a ser o Paul covarde de antes.
Eu não tremi quando comecei a operar Marrie. Se em algum dia eu fora realmente o melhor médico do país, se eu já salvara milhares de vidas, naquele momento eu precisava provar para mim mesmo que eu não carregara tal título por tantos anos em vão.
E mantive minhas mãos firmes naquele momento porque sabia que Marrie contava comigo. E já se passara mais de 10 anos desde a última decepção que eu lhe dera. Não seria aquele o dia em que voltaria a ser o Paul covarde de antes.
Também já se passara mais de 10 anos desde a última vez em que eu pegara em
um bisturi e pinça para operar alguém. Sentia um calafrio tremendo, e minha
perna direita não latejava intensa e intermitentemente enquanto eu retirava a bala de
Marrie. Sentia que minha pressão ia lentamente abaixando, e sabia que a qualquer momento
poderia desmaiar. Contudo, mantive-me firme.
Não sei quanto tempo demorou, mas enfim a ambulância chegou, e continuei operando Marrie enquanto ela era transportada até a cidade mais
próxima com hospital. Meu desejo era pagar um helicóptero para que minha
pequena não perdesse mais um segundo sequer, e para que aquele sangue todo
parasse de ir embora.
Todavia, não era mais o Paul de antes. O dinheiro que
tínhamos, usamos para investir em nossas vidas: compramos a nossa casa, reformamo-la, montamos a
cafeteria, e o resto doamos, viajamos, sabe-se lá o que fizemos com o dinheiro
que trouxemos. Só sabia que, naquela hora, a única coisa que tinha a oferecer para
Marrie eram as minhas mãos de cirurgião.
Eu não sabia se ela ainda estava viva, e não olhava para
nenhum aparelho para conferir seus sinais vitais, apenas continuei a opera-la,
até que costurei, com exímia perfeição, o último ponto. E enfim desmaiei.
Acordei algumas horas depois, já deitado em uma cama
hospitalar, e me deparei com minha perna direita enfaixada. Durante minha briga
com David, eu fora baleado na perna, e provavelmente era o escoamento de sangue
que me fizera perder os sentidos. E mesmo com uma dor insuportável, que enfim
aparecera, corri para saber notícias de Marrie.
Ao tentar descer da cama bruscamente, escorreguei e senti
minha perna doer ainda mais, mas me levantei rapidamente e comecei a correr, de
forma manca, em busca de minha mulher.
Entretanto, quando avistei o balcão de informações, fui
desacelerando minha velocidade, até que caí de joelhos no chão. Aos prantos.
Não fui capaz de correr até o balcão de informações porque não tinha coragem de
ouvir o que havia acontecido com Marrie. Se estava bem, se não resistira, era
simplesmente impossível para eu ouvir qual seria o destino de minha vida.
- Você é um filho de uma puta, mas é um durão, cara! Deixa
eu te ajudar a levantar. Você vai precisar de uma cadeira de rodas, pelo menos
por um mês, e depois fisioterapia. Não pode fazer o que fez, Paul.
Para mim foi difícil reconhecer a voz, mas assim que olhei
para cima, vislumbrei o rosto de um antigo colega meu de faculdade, que sempre
tirava notas inferiores a minha, e usava de minha homossexualidade escondida
para fazer gozações a meu respeito e continuar sendo o mais popular da sala.
- Frederic, a minha... – não tinha forças para falar, as
lágrimas jorravam de meus olhos e meu coração parecia ter paradas, de tanto que
batia doído.
- Como eu dizia, Paul, - Frederic já havia me colocado em
uma cadeira de rodas, e a estava empurrando. – você é um filho de uma puta
mesmo! Só você para conseguir salvar a vida daquela mulher. Os anos se
passaram, você perdeu essa porra de licença para atuar na medicina, e continua
sendo o melhor cirurgião do mundo. Você deve ser anjo mesmo.
- Fr-frederic... – as lágrimas ainda não paravam de descer.
- Ali está ela, Paul, não sei como você conseguiu fazer isso
naquela espelunca, mas você o fez. Ela precisa ficar em coma induzido por algum
tempo, você sabe. Mas sua mulher vai se recuperar.
Dr. Frederic abriu a porta, e entramos no quarto de Marrie.
Estava toda entubada, mais pálida que o costume, sem um fio de cabelo ruivo na
cabeça, e um sono profundo. Mas Marrie estava viva. E iria sobreviver.
Ao pegar em uma de suas mãos e sentir que estavam quentes,
ou seja, ainda possuíam sinais vitais, deixei o seu quarto, e, mesmo não
podendo, levantei-me da cadeira de rodas e fui devagar até a capela do
hospital. E após uma vida inteira de mentiras, pela primeira vez, me ajoelhei
de verdade, e orei.
Com as mãos voltadas para o alto, chorei e rezei até perder
as forças. Conversei com Deus em voz alta, e o agradeci por ter ouvido o meu
pedido. Por perdoar todas as minhas falhas ao longo dos anos, e,
principalmente, por ter abençoado as minhas mãos. Chorei, orei, e depois voltei
ao quarto de Marrie.
Obriguei que me acomodassem ali, ao lado de minha esposa,
pois não podia perder um segundo sequer de seu sono profundo. Era arriscado
demais. Era tudo o que eu não queria.
E um mês se passou. Minha perna ainda doía muito, mas já
estava bem melhor. Eu provavelmente ficaria manco para o resto de minha vida,
visto o esforço que fizera de ficar horas em pé, enquanto operava Marrie, mas
aquilo pouco me importava. Eu doara um pedaço de mim para que minha melhor
metade sobrevivesse.
Marrie já havia sido retirada do coma, bastava apenas que
acordasse. Seu corpo, cérebro, tudo funcionava perfeitamente, precisávamos
apenas esperar que Marrie abrisse os olhos e voltasse para a realidade.
Alguns psicólogos já haviam conversado comigo, me preparando
para o retorno de Marrie, algo que não seria fácil. Provavelmente Marrie
voltaria sem se lembrar de nada, ou, ainda, com visões distorcidas do passado,
lembrando-se apenas de tragédias e passagens ruins que lhe acontecera. Eles
acreditavam que era devido a uma vida de tantos traumas que Marrie ainda não
tinha acordado. Era o seu inconsciente querendo dormir para não sofrer mais.
Todavia, todos sabiam que uma hora ou outra, Marrie iria
acordar. Bastava esperar.
E eu esperei, meu caro leitor. Eu esperei e assisti cada
segundo de seu sono profundo. Contei-lhe histórias, cantei para Marrie suas
músicas preferidas, dei-lhe de banho e fazia curativo em suas escaras, tudo
para que voltasse bem.
Os psicólogos continuavam a me alertar para que não criasse
muita expectativa a respeito de seu retorno, pois ninguém saberia como Marrie
voltaria. Todos insistiam em me dizer que Marrie voltaria sem se lembrar de
nada, que eu deveria me preparar para o pior.
Mas não me preparei. Pelo contrário, tive uma ideia.
Pensei em escrever para Marrie uma história. Não uma
história qualquer, cheia de personagens bonitos e com finais felizes, isso não.
Pensei em lhe escrever uma história estranha, em que uma puta, de repente,
apaixona-se por um veado, e os dois resolvem se tornar um casal.
Escrevi para Marrie uma história onde o homem mais covarde
do mundo foi capaz ver sua mulher apanhar de um homem três vezes maior do que
ela, e não fazer nada. Onde o presente de aniversário não é uma joia, mas um
mero xampu de farmácia.
Escrevi para Marrie uma história cheia de problemas, conflitos
internos, preconceitos e sangue, sem medo de colocar ali as partes ruins e
tristes. Porque no meio de tanta esquisitice, havia amor ali. Havia muito amor
ali. Porque aquela era a nossa história.
E sei, meu caro leitor, que não fui o melhor dos personagens
principais, não fui um príncipe, ou o mocinho que salva a donzela na hora
necessária. Fui um tremendo de um babaca. E não tive medo de lhe escrever como
realmente fui, como fui aconteceu.
Pois como disse, esta é uma história de segundas chances. E
se você, meu leitor, me deu esta segunda chance, Marrie há de dar também.
E seremos então, não como nos contos de fadas, “felizes para
sempre”. Seremos apenas dois humanos iguais. Dois humanos com inúmeras
cicatrizes pelo corpo, e com mil razões para continuar, porque decidimos ser um
só.
-- FIM --