(FOTO: https://www.flickr.com/photos/sinuskumar/5541661829)
Queria poder lhe contar uma história. Destas que se abre o papel e quer-se comer a folha, as palavras, pois o enredo sistematizado é de tamanho envolvimento que anseia-se pelo fim como quem anseia pelo fim da espera.
Contudo, não sou capaz de contar tal narrativa. Aqui, dentro deste papel, não se tem vontade de comer a folha e as palavras. Porque, em resumo, a folha e as palavras foram o que me tornei.
De tanto tempo em contato, acabei por me absorver naquilo que seria impossível. Impossível que se tornou ser. De tanto tempo e contato, de tantos dedos e pele, tornei-me apenas tinta, e esta se tornou aquilo que chamo de "eu".
Mas como posso deixar que esta tinta transforme-se em algo que ainda não conheço? Pois deixá-la ser aquilo que chamo de "eu" sem saber o que este "eu" realmente significa, seria o mesmo que despedir-se de mim para que outro a fosse. E que eu acabasse me tornando a outra.
Preferi então coexistir. Preferi e escolhi tornar-me um ser duplo, onde metade é gente, e a outra metade é aquilo que prefiro não falar.
A outra metade é aquilo que escondo, que tranco as sete chaves, e que ao final, acabo escrevendo.
Escrevo porque "aquilo" - que faz parte de mim e é o "sujeito-ser" no mais simples sentido da palavra - precisa sair.
"Eu" precisa sair de mim para que eu seja "eu sozinha".
Não me importo com o olhar que me dará, Marujo, pois sei que você há de me entender desta vez. Preciso me desprender deste corpo para que "eu" se encontre.
E quem sabe, então, desprendida - ou fugida -, eu não consiga fazer com que aquela tinta se torna aquilo que um dia esperei de mim.
Quem sabe assim, com "aquilo" aparecendo, eu não seja como a flor que se abre, desabrocha, e perfuma a vida, trazendo-lhe a frase: "Estou pronta."
"Estou pronta, Marujo!". Estou pronta, sem pétalas a abrir, mas com mãos e dedos sujos de tinta, que recitam as palavras: "Estou livre... e em paz."
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
Olá! :) (voltei)
Hoje resolvi quebrar o protocolo: aceitei colocar a caneta entre os meus dedos para que a letra cravasse no papel sem linhas tudo aquilo que preciso lhe dizer.
É que quando lhe escrevo, abro as portas para conversar comigo mesma. Eu que sou você e que não sou "mim" às vezes. Eu que preciso ser alguém escrito e definido como "isto". Como se de repente a vida se tornasse algo tão distinto daquilo que esperava, que preciso agora de um locutor para justificar o meu "olá".
"Olá, Marujo!", assim começaria tal carta se esta não fosse eu querendo falar comigo. Por isso começo com um resumido: "Olá!".
"Olá!" que era pra ser despretensioso o bastante para chamar a atenção, mas que não atingiu o objetivo da palavra-coisa e então tornou-se o que sou.
É bem isso, Marujo! Tornei-me um "olá!". Tornei-me uma palavra de três letras, o ícone da recepção formal.
Porque agora me encontro em uma nova fase: a de me desamarrar...
Como um escravo alforriado pela bondade da lei humana, tornei-me livre das amarras quando pude ser eu mesma.
Que engraçado, não é mesmo?
Primeiro fui live para depois ser um ser livre. Primeiro veio o verbo "fui", para depois vir o verbo "ser".
Seguindo a linha natural da vida, entendi que primeiro é preciso ir, para depois tornar-me a construção. A eterna busca do ar livre, que nada mais é que o simples exercício de respiração. E expiração. Liberdade é exercício.
Eu, que vivo na confusão de ser tsunami e ser Marujo, resolvi lhe (me) escrever para encontrar a resposta.
E agora, entre riscos e rabiscos deste corpo humano que tem a alma feita de água, concentro-me não mais em buscar. Concentro-me agora apenas no receber... no acontecer... no aparecer..
No "Olá!'.
Bom final de semana a todos! :)
É que quando lhe escrevo, abro as portas para conversar comigo mesma. Eu que sou você e que não sou "mim" às vezes. Eu que preciso ser alguém escrito e definido como "isto". Como se de repente a vida se tornasse algo tão distinto daquilo que esperava, que preciso agora de um locutor para justificar o meu "olá".
"Olá, Marujo!", assim começaria tal carta se esta não fosse eu querendo falar comigo. Por isso começo com um resumido: "Olá!".
"Olá!" que era pra ser despretensioso o bastante para chamar a atenção, mas que não atingiu o objetivo da palavra-coisa e então tornou-se o que sou.
É bem isso, Marujo! Tornei-me um "olá!". Tornei-me uma palavra de três letras, o ícone da recepção formal.
Porque agora me encontro em uma nova fase: a de me desamarrar...
Como um escravo alforriado pela bondade da lei humana, tornei-me livre das amarras quando pude ser eu mesma.
Que engraçado, não é mesmo?
Primeiro fui live para depois ser um ser livre. Primeiro veio o verbo "fui", para depois vir o verbo "ser".
Seguindo a linha natural da vida, entendi que primeiro é preciso ir, para depois tornar-me a construção. A eterna busca do ar livre, que nada mais é que o simples exercício de respiração. E expiração. Liberdade é exercício.
Eu, que vivo na confusão de ser tsunami e ser Marujo, resolvi lhe (me) escrever para encontrar a resposta.
E agora, entre riscos e rabiscos deste corpo humano que tem a alma feita de água, concentro-me não mais em buscar. Concentro-me agora apenas no receber... no acontecer... no aparecer..
No "Olá!'.
Bom final de semana a todos! :)
quarta-feira, 23 de abril de 2014
PAUL E MARRIE - ÚLTIMO CAPÍTULO: PORQUE ESCREVI ESTA HISTÓRIA
Não era apenas a vida de Marrie que estava em minhas mãos.
Eu sabia que ali, em meio a todo aqueles fios de cabelos esparramados pelo chão, também
estava minha vida. Os meus anos passados, os meus anos que estariam por vir, todo e cada
segundo vivido e por viver dependeriam daquela cirurgia. Porque a pessoa que
estava deitada, desmaiada naquela cama, era a única parte boa que
ainda existia em mim. E eu não permitiria que ela fosse embora. Era egoísta
demais para deixar Marrie partir.
Nunca tive crença alguma além da Medicina, sempre frequentei
às missas aos domingos para cumprir minha obrigação perante a sociedade, e
desde que chegara àquele novo lugar, onde não precisava mais ser o “Doutor-Anjo”,
nunca mais fingira fazer uma oração.
Mas depois de conhecer Marrie, em uma coisa eu acreditava
com todas as minhas forças: que a vida nos dava segundas chances. E esta é uma
história de segundas chances, meu caro leitor.
Eu não tremi quando comecei a operar Marrie. Se em algum dia eu fora realmente o melhor médico do país, se eu já salvara milhares de vidas, naquele momento eu precisava provar para mim mesmo que eu não carregara tal título por tantos anos em vão.
E mantive minhas mãos firmes naquele momento porque sabia que Marrie contava comigo. E já se passara mais de 10 anos desde a última decepção que eu lhe dera. Não seria aquele o dia em que voltaria a ser o Paul covarde de antes.
Eu não tremi quando comecei a operar Marrie. Se em algum dia eu fora realmente o melhor médico do país, se eu já salvara milhares de vidas, naquele momento eu precisava provar para mim mesmo que eu não carregara tal título por tantos anos em vão.
E mantive minhas mãos firmes naquele momento porque sabia que Marrie contava comigo. E já se passara mais de 10 anos desde a última decepção que eu lhe dera. Não seria aquele o dia em que voltaria a ser o Paul covarde de antes.
Também já se passara mais de 10 anos desde a última vez em que eu pegara em
um bisturi e pinça para operar alguém. Sentia um calafrio tremendo, e minha
perna direita não latejava intensa e intermitentemente enquanto eu retirava a bala de
Marrie. Sentia que minha pressão ia lentamente abaixando, e sabia que a qualquer momento
poderia desmaiar. Contudo, mantive-me firme.
Não sei quanto tempo demorou, mas enfim a ambulância chegou, e continuei operando Marrie enquanto ela era transportada até a cidade mais
próxima com hospital. Meu desejo era pagar um helicóptero para que minha
pequena não perdesse mais um segundo sequer, e para que aquele sangue todo
parasse de ir embora.
Todavia, não era mais o Paul de antes. O dinheiro que
tínhamos, usamos para investir em nossas vidas: compramos a nossa casa, reformamo-la, montamos a
cafeteria, e o resto doamos, viajamos, sabe-se lá o que fizemos com o dinheiro
que trouxemos. Só sabia que, naquela hora, a única coisa que tinha a oferecer para
Marrie eram as minhas mãos de cirurgião.
Eu não sabia se ela ainda estava viva, e não olhava para
nenhum aparelho para conferir seus sinais vitais, apenas continuei a opera-la,
até que costurei, com exímia perfeição, o último ponto. E enfim desmaiei.
Acordei algumas horas depois, já deitado em uma cama
hospitalar, e me deparei com minha perna direita enfaixada. Durante minha briga
com David, eu fora baleado na perna, e provavelmente era o escoamento de sangue
que me fizera perder os sentidos. E mesmo com uma dor insuportável, que enfim
aparecera, corri para saber notícias de Marrie.
Ao tentar descer da cama bruscamente, escorreguei e senti
minha perna doer ainda mais, mas me levantei rapidamente e comecei a correr, de
forma manca, em busca de minha mulher.
Entretanto, quando avistei o balcão de informações, fui
desacelerando minha velocidade, até que caí de joelhos no chão. Aos prantos.
Não fui capaz de correr até o balcão de informações porque não tinha coragem de
ouvir o que havia acontecido com Marrie. Se estava bem, se não resistira, era
simplesmente impossível para eu ouvir qual seria o destino de minha vida.
- Você é um filho de uma puta, mas é um durão, cara! Deixa
eu te ajudar a levantar. Você vai precisar de uma cadeira de rodas, pelo menos
por um mês, e depois fisioterapia. Não pode fazer o que fez, Paul.
Para mim foi difícil reconhecer a voz, mas assim que olhei
para cima, vislumbrei o rosto de um antigo colega meu de faculdade, que sempre
tirava notas inferiores a minha, e usava de minha homossexualidade escondida
para fazer gozações a meu respeito e continuar sendo o mais popular da sala.
- Frederic, a minha... – não tinha forças para falar, as
lágrimas jorravam de meus olhos e meu coração parecia ter paradas, de tanto que
batia doído.
- Como eu dizia, Paul, - Frederic já havia me colocado em
uma cadeira de rodas, e a estava empurrando. – você é um filho de uma puta
mesmo! Só você para conseguir salvar a vida daquela mulher. Os anos se
passaram, você perdeu essa porra de licença para atuar na medicina, e continua
sendo o melhor cirurgião do mundo. Você deve ser anjo mesmo.
- Fr-frederic... – as lágrimas ainda não paravam de descer.
- Ali está ela, Paul, não sei como você conseguiu fazer isso
naquela espelunca, mas você o fez. Ela precisa ficar em coma induzido por algum
tempo, você sabe. Mas sua mulher vai se recuperar.
Dr. Frederic abriu a porta, e entramos no quarto de Marrie.
Estava toda entubada, mais pálida que o costume, sem um fio de cabelo ruivo na
cabeça, e um sono profundo. Mas Marrie estava viva. E iria sobreviver.
Ao pegar em uma de suas mãos e sentir que estavam quentes,
ou seja, ainda possuíam sinais vitais, deixei o seu quarto, e, mesmo não
podendo, levantei-me da cadeira de rodas e fui devagar até a capela do
hospital. E após uma vida inteira de mentiras, pela primeira vez, me ajoelhei
de verdade, e orei.
Com as mãos voltadas para o alto, chorei e rezei até perder
as forças. Conversei com Deus em voz alta, e o agradeci por ter ouvido o meu
pedido. Por perdoar todas as minhas falhas ao longo dos anos, e,
principalmente, por ter abençoado as minhas mãos. Chorei, orei, e depois voltei
ao quarto de Marrie.
Obriguei que me acomodassem ali, ao lado de minha esposa,
pois não podia perder um segundo sequer de seu sono profundo. Era arriscado
demais. Era tudo o que eu não queria.
E um mês se passou. Minha perna ainda doía muito, mas já
estava bem melhor. Eu provavelmente ficaria manco para o resto de minha vida,
visto o esforço que fizera de ficar horas em pé, enquanto operava Marrie, mas
aquilo pouco me importava. Eu doara um pedaço de mim para que minha melhor
metade sobrevivesse.
Marrie já havia sido retirada do coma, bastava apenas que
acordasse. Seu corpo, cérebro, tudo funcionava perfeitamente, precisávamos
apenas esperar que Marrie abrisse os olhos e voltasse para a realidade.
Alguns psicólogos já haviam conversado comigo, me preparando
para o retorno de Marrie, algo que não seria fácil. Provavelmente Marrie
voltaria sem se lembrar de nada, ou, ainda, com visões distorcidas do passado,
lembrando-se apenas de tragédias e passagens ruins que lhe acontecera. Eles
acreditavam que era devido a uma vida de tantos traumas que Marrie ainda não
tinha acordado. Era o seu inconsciente querendo dormir para não sofrer mais.
Todavia, todos sabiam que uma hora ou outra, Marrie iria
acordar. Bastava esperar.
E eu esperei, meu caro leitor. Eu esperei e assisti cada
segundo de seu sono profundo. Contei-lhe histórias, cantei para Marrie suas
músicas preferidas, dei-lhe de banho e fazia curativo em suas escaras, tudo
para que voltasse bem.
Os psicólogos continuavam a me alertar para que não criasse
muita expectativa a respeito de seu retorno, pois ninguém saberia como Marrie
voltaria. Todos insistiam em me dizer que Marrie voltaria sem se lembrar de
nada, que eu deveria me preparar para o pior.
Mas não me preparei. Pelo contrário, tive uma ideia.
Pensei em escrever para Marrie uma história. Não uma
história qualquer, cheia de personagens bonitos e com finais felizes, isso não.
Pensei em lhe escrever uma história estranha, em que uma puta, de repente,
apaixona-se por um veado, e os dois resolvem se tornar um casal.
Escrevi para Marrie uma história onde o homem mais covarde
do mundo foi capaz ver sua mulher apanhar de um homem três vezes maior do que
ela, e não fazer nada. Onde o presente de aniversário não é uma joia, mas um
mero xampu de farmácia.
Escrevi para Marrie uma história cheia de problemas, conflitos
internos, preconceitos e sangue, sem medo de colocar ali as partes ruins e
tristes. Porque no meio de tanta esquisitice, havia amor ali. Havia muito amor
ali. Porque aquela era a nossa história.
E sei, meu caro leitor, que não fui o melhor dos personagens
principais, não fui um príncipe, ou o mocinho que salva a donzela na hora
necessária. Fui um tremendo de um babaca. E não tive medo de lhe escrever como
realmente fui, como fui aconteceu.
Pois como disse, esta é uma história de segundas chances. E
se você, meu leitor, me deu esta segunda chance, Marrie há de dar também.
E seremos então, não como nos contos de fadas, “felizes para
sempre”. Seremos apenas dois humanos iguais. Dois humanos com inúmeras
cicatrizes pelo corpo, e com mil razões para continuar, porque decidimos ser um
só.
-- FIM --
quarta-feira, 16 de abril de 2014
PAUL E MARRIE - Cap. 26: Sr. Brian e Sra. Margareth
(FOTO: https://www.flickr.com/photos/christophersoddsandsods/3010151747/sizes/z/in/photostream/)
Não sei como, mas Marrie e eu nos tornamos Sra. Margareth e
Sr. Brian. Em pouco tempo reformamos a padaria abandonada com as nossas
próprias mãos, e ali fizemos nascer a “Cafeteria de Sr. Brian”.
Passei os primeiros meses prometendo a Marrie que pararia de
fumar, mas percebi que de nada adiantariam minhas vagas promessas àquela
mulher. Ela não se importava com o meu hálito de nicotina, nem com a barba, que
também deixara de fazer desde que chegamos àquele lugar.
E ao poucos, me dei conta que a vaidade que mantive durante
os anos, nada valiam naquele vilarejo. Éramos para a pequena população dali
apenas o Sr. Brian e a Sra. Margareth. Éramos apenas dois seres humanos
tentando ser felizes juntos na visão daquela pequena população. E eles não se
enganavam.
A princípio, temi que Marrie fosse vítima de preconceito
pelos moradores, devido suas cicatrizes, porém, mais uma vez a vida me mostrou
que de nada eu sabia sobre o ser humano.
Desde o primeiro dia, todos que entraram em nossa cafeteria
pareciam estar muito mais preocupados com o cardápio que servíamos do que com
aparência de nós, os donos. Ninguém queria saber de nosso passado, e nem de
onde víamos. Os moradores de nosso novo lar só queriam saber de um café forte e
panquecas salgadas. E isso Marrie sabia fazer muito bem.
Algumas crianças espantaram-se com a aparência de Marrie, e
lhe perguntaram como uma moça tão bonita conseguira tantas cicatrizes. Marrie
não se constrangera em momento algum, apenas sorrira com amor, e lhes respondeu
que há muito tempo atrás, ela tivera de lutar com um enorme leão, e que ela
conseguira vencer a batalha, mas que ficara com aquelas cicatrizes. Não demorou
muito para que as crianças lhe chamasse de “Margareth-cabelos-de-leão”.
Se quer, meu caro leitor, era uma cidadezinha de merda, mas
eu encontrei minha paz ali. Enfim eu podia ser o “Paul de Marrie”. Enfim eu me
tornei o homem que minha mulher merecia.
Acabamos por escolher uma vida rotineira, cheia de calos nas
mãos e farinha nos cabelos, entretanto, nada parecia melhor para mim do que
largar a Capital e me tornar um padeiro de primeira. Porque ali, meu caro
leitor, eu e Marrie éramos um só.
E não houve um aniversário de Marrie que ela não ganhasse um
novo vidro daquele xampu que tanto nos marcara. E não só xampus, eu lhe dei as
minhas joias de família, ensinei Marrie a dirigir, e todo ano fechávamos a
nossa cafeteria para que pudéssemos viajar, e até nos demos o luxo de comprar
uma máquina fotográfica, algo que naquele tempo era item exclusivo de jornais e
editoras.
Passaram-se dez anos, dez anos de muito amor, de muitos
momentos, e, de principalmente, muitos cabelos ruivos. Cabelos estes que eu todos
os dias de madrugada fazia uma grande trança, para que minha pequena mulher
pudesse acomodá-los dentro de uma touca. Tornamo-nos, em uma década, além de
marido e mulher, uma perfeita equipe.
E por falar em marido e mulher, meu caro leitor, nós
celebramos sim o nosso casamento. Depois de um mês que nos mudamos para aquele
vilarejo, eu comecei a anteder pessoas gratuitamente. Ali ninguém parecia dar
importância pelo fato de eu não ter diploma, muito menos autorização legal para
trabalhar.
O hospital da cidade era minúsculo, com apenas cinco leitos,
e os médicos que ali trabalhavam, vinham duas vezes por semana de outras
cidades, apenas atendendo casos aparentemente urgentes, deixando a pequena
população à mercê da sorte.
Quando os médicos e enfermeiros não estavam na cidade, eu me
ocupava do único consultório dentro do nosso hospital e ali atendia a cidade
inteira: passava remédios sem receitas, pois contávamos com a colaboração do
único farmacêutico dali, limpava ferimentos leves e enfaixava algumas
queimaduras, mas cirurgias, que fora a minha especialização e sonho de anos
atrás, estas eu deixei no passado. Temia voltar a ser o Paul que inúmeras vezes
abandonara Marrie.
E como estava lhe contando, meu caro leitor, depois de um
mês morando ali, comecei a trabalhar no hospital, e logo me tornei uma pessoa
querida pela cidade, mas não mais que minha Marrie. Ou melhor dizer, não mais
que “Margareth-cabelos-de-leão”.
Ao confessar a um de meus pacientes o desejo de celebrar a
minha união com “Margareth”, em duas semanas toda a cidade se movimentou para
que pudéssemos realizar o nosso casamento da praça da cidade. Fora uma festa
simples, sem a presença de meus pais, que desde a minha fuga da cidade, nunca
mais tivera contato. Contudo, parecia ser exatamente com o que Marrie havia
sonhado. E se era assim, para mim estava perfeito.
Casamo-nos, servimos na festa um bolo de nossa própria
cafeteria e toda a cidade nos recebeu oficialmente como pessoas que se tornaram
da família. Um médico sem licença para atuar, e um ex-prostituta metida a
confeiteira, e para eles, éramos a união perfeita.
Infelizmente não pudemos ter filhos, e nunca sugeri a Marrie
que adotássemos, pois percebia que este também era um assunto que Marrie quis
deixar no passado. Porém, não a impedi que adotasse todos os animais
abandonados daquele lugar, incluindo na lista um porco, uma zebra, oito
cachorros e três gatos. O nosso quintal virara uma pequena fazenda.
Com o passar dos anos, meus cabelos loiros foram ficando
grisalhos, ralos, e Marrie parecia ficar cada vez mais linda, mais jovem, e por
incrível que pareça, mais ruiva. Minha mulher.
Eu queria, meu caro leitor, que esta história, a minha
história e a de Marrie, tivesse terminado assim, com a nossa pequena fazenda,
com o nosso casamento e com a “Cafeteria de Sr. Brian” que demos continuidade.
Todavia, eu deveria saber que estava tudo indo bem demais
para ser verdade. Para ser a minha realidade.
E foi na última sexta-feira que tudo aconteceu. Marrie
acordou assustada, meia hora antes do despertador tocar, dizendo que sonhara
com corvos, e que isso significaria maus presságios.
Confortei-a com as
duas mãos, dizendo que nada poderia nos atingir, que agora estávamos seguros,
e, principalmente, em paz. Tentei abraça-la para que pudéssemos deitar de novo
na cama, mas Marrie não consentiu. Disse que se sentia preocupada demais para
tentar dormir de novo.
Ao contrário de seu sonho, o nosso dia correu bem. Pessoas
entrando e saindo de nossa cafeteria, crianças correndo e pedindo bombons a
Marrie, como um dia normal. Até pude ver seu semblante mudar, tornar-se mais
brando, esquecendo-se do pesadelo que tivera horas atrás.
Chegara então o entardecer, e, consequentemente, a hora de
fecharmos o nosso negócio. Havíamos planejado viajar no dia seguinte, em comemoração
aos nossos 10 anos de casados. Entrei para os fundos, com o objetivo de lavar a
louça, enquanto Marrie limpava as mesas. Estávamos conversando aos gritos um
com o outro, para que nos ouvíssemos em cômodos diferentes, como já era de
nosso costume, até que, de repente, Marrie se calou.
- Margareth, está tudo bem com você? – perguntei, chamando-a
pela nova identidade que criamos.
- Ah, Paul, há quanto tempo não ouvia essa sua voz de
bichinha, mas que engraçado, ela não mudou nada!
Já fazia mais de 10 anos que eu não ouvia aquela voz, mas
não demorou mais que um segundo para que eu fosse correndo até a entrada da
cafeteria, pois sabia que quem estava ali era David, e que isso não poderia ser
um bom sinal.
E realmente não foi, pois assim que pisei atrás do balcão,
vi Marrie com as mãos para o alto, e David lhe apontando uma arma. Havia fúria
em seus olhos.
- Sabe o que é engraçado, Paul? Você, que um dia jurou amor
eterno para mim, igualzinho você jurou para esta puta aí, você me deixou! VOCÊ
ME DEIXOU, DR. PAUL! E conseguiu arruinar a minha vida inteira.
- David, por favor, vamos nos acalmar e...
- AH, MAS EU NÃO VOU ME ACALMAR, NÃO, PAUL! EU ESTOU HÁ DEZ
ANOS RODANDO A PORRA DESTE PAÍS ATRÁS DE VOCÊ, DIA APÓS DIA FAREJANDO O PERFUME
BARATO DESTA PUTA QUE DESTRUIU A MINHA VIDA, SÓ PARA PODER VÊ-LA APODRECENDO EM
MINHAS MÃOS.
- David, abaixe esta arma...
David não abaixou a arma. David atirou em Marrie. Eu, no
momento, não sabia se o tiro havia acertado o alvo, porque pulei o balcão
imediatamente para tentar impedir que David cometesse mais uma barbaridade com
ela. Já não era mais o covarde de antes, e não tive medo de colocar minha vida
em risco.
Ouvi três estalos de tiro. Apenas os ouvi, pois estava cego
de raiva, e não vi o que estava fazendo. Quando minha consciência voltou,
estava lutando com David, tentando retirar a arma de sua mão, e olhei de
relance para trás, vendo que Marrie estava caída.
Mesmo passados 10 anos sem atuar na profissão, podia ver que
Marrie fora baleada na cabeça. Não era mais um tiro de raspão, como acontecera
há uma década, no hospital de nossa antiga cidade. Agora Marrie estava ferida
de verdade, e eu tinha certeza que ela iria morrer.
Fui tomado por um sentimento que até hoje sou incapaz de
nomeá-lo. A única que sei foi que em um só gesto tomei a arma de David e atirei
nele três vezes, até vê-lo também caído no chão, e ainda com a arma na mão,
peguei Marrie no colo, e corri da maneira mais desesperada que era possível de
se ver um ser humano lutar, e fui para o hospital. Não podia deixa-la morrer.
Enquanto corria, gritava socorro com todas as minhas forças,
para que os dois enfermeiros da cidade pudessem me ouvir e correr para o
hospital. As minhas lágrimas se misturavam com o sangue que Marrie ia esvaindo
pelo corpo, mas não perdi a esperança em momento algum.
Com uma das pernas, quebrei o vidro da porta do hospital e
entrei correndo com Marrie, e enquanto ouvia os passos de algumas pessoas ali
entrando, ia arrumando a sala de cirurgia, que há meses não havia sido
utilizada por ninguém.
- Sr. Brian, o senhor não pode fazer isso! Temos que ligar e
chamar o cirurgião para vir socorrer a Sra. Margareth.
- EU ESTOU ME FODENDO PARA O QUE EU POSSO E O QUE EU NÃO
POSSO FAZER! EU VOU SALVAR A MINHA MULHER, EU POSSO FAZER ISSO! ME PASSA A
TESOURA.
Cortar o cabelo de Marrie foi algo que partiu meu coração.
Não conseguia para de chorar enquanto ia vendo minha mulher ir embora, enquanto
via seus cabelos caírem no chão.
- Sr. Brian, você vai matar a Sra. Margareth. Já ligamos e o
socorro está para chegar. Se o senhor não sair por bem,...
- Vai demorar no mínimo uma hora para eles chegarem, Louis,
eu vou perder minha mulher.
- Eu infelizmente vou ter que chamar um segurança para tirar
o senhor daqui.
Fingi que não o ouvia e sedei Marrie. O mundo inteiro
poderia tentar me tirar dali, mas só sairia depois que operasse minha mulher.
Enquanto eu ouvisse um fio de respiração sua, não a deixaria sozinha. Nunca
mais.
A enfermeira-chefe, se é que se podia chama-la de chefe,
pois era a única enfermeira do sexo feminino da cidade, porém com mais de 20
anos de profissão, impediu que Louis fosse atrás de alguém para me tirar dali.
Ela falava baixo com ele, quase como um sussurro, mas fui capaz de ouvir:
- Louis, este homem não é o Sr. Brian. Desde que ele chegou
na cidade eu tinha essa desconfiança, mas não podia afirmar nada. Este homem se
chama Paul Robert, também conhecido como “Doutor-Anjo”. E se ele for tudo isso
o que comentam dele por todo este país, ele vai salvar esta mulher antes do
nosso socorro chegar.
quarta-feira, 2 de abril de 2014
PAUL E MARRIE - Cap. 25: PRESSA EM SER FELIZ
(FOTO: https://www.flickr.com/photos/bogdansuditu/2377842887/sizes/m/in/photolist-4C84Ra-4R2y5o-4Y1Xku-5hRNE9-5jD4mB-5jUCUp-5knmHN-5kHaRc-5uGGC8-5uSpD7-5vhh2F-5EEiK6-5F3SAn-5GSFdA-6e7ThV-6ec4nN-6ec5bb-6fsYE3-6AP4S2-6GAqWg-6RSSD7-6S2aBi-6UqCx4-74wDq8-7cV8Cg-7kbKxC-7nFGvH-7vfdsh-dvJ234-dtFrXY-dLKq3n-g9ueUn-g9uRsM-9qBZZk-8bdjTY-8SESTm-e9kHBt-9jw6zG-dfSjgs-ayB1zk-ayDFBA-9p9aww-gp2oaV-c5gY1S-bEFzcE-bEnNtU-bXGnLA-bEnNyu-bXGbQm-bThxxV-bEnNSo/)
Eu tremia tanto quando entrei no carro que tive que pedir para que Marrie acendesse o meu cigarro para que pudéssemos seguir viagem. Não conseguiria dirigir por um quilômetro que fosse se não desse uma tragada antes. Mas os cigarros não conseguiam me acalmar.
O carro parecia voar pela estrada de terra, e não havia
vento no mundo que me fizesse parar de suar. Sentia-me, naquele momento, muito
mais como um prisioneiro fugitivo do que quando fora obrigado a fugir de
verdade para me esconder na fazenda. Meu coração estava a mil por hora.
Era perceptível o nervosismo de ambos, a adrenalina correndo
por aquele carro que mal cabia o enorme vestido de Marrie, e suas mãos tremiam
tanto quanto as minhas. De repente, encostei o carro embaixo de uma árvore e
disse para Marrie:
- Olha, Marrie, me perdoa, eu sei que você não imaginava sua
lua de mel começando assim, mas...
- Ah, bonitão, - Marrie sorriu, ainda trêmula. – eu sequer
achava que algum dia alguém fosse ter coragem de se casar comigo... há há há.
Acho que estou no céu agora. Estou ao lado de quem eu quero. – Marrie pousou
sua mão sobre a minha. A mão do anel.
- Por quê você ia fazer isso, Marrie? Por que se casar com
ele? E agora, eles vão nos encontrar e...
- Ninguém virá atrás de nós, bonitão... – Marrie sorria para
mim como se soubesse de algo que eu ainda não tinha consciência.
- Como assim? Eu vi a cara de perplexidade daquele seu
noivo, ele não vai deixar você ir embora tão fácil...
- Penso eu, Sr. Paul, que isso é tudo o que ele mais quer.
- Não estou entendendo você, menina! O que é que está
acontecendo?
- Será que você não percebeu, Paul? Andrew, meu noivo, é
gay! Gay de verdade, não gay como você disse que era para mim alguns anos
atrás. David não contrataria alguém que não fosse interessante para ele, você sabe
disso, - olhei assustado para Marrie e pensei em lhe interromper, porém não o
fiz. – não que os dois tenham algum caso, porque Andrew me disse que o David
não faz o seu estilo. – Marrie olhava para um ponto fixo, como se estivesse se
recordando do que estava a me dizer. – Pois bem, ele foi contratado para o
hospital, e logo ligou os pontos, percebendo que David estava envolvido com a
sua denúncia e veio me perguntar o que realmente tinha acontecido. Eu, que
estava muito abalada, sem ninguém para conversar, acabei me abrindo com Andrew
e contando toda a nossa história. Desde então nos tornamos grandes amigos.
“E por um acaso do destino, Paul, Andrew também me contou a
sua história. E ele é como você era no passado. Ele precisava muito de alguém
para manter as aparências, e ninguém melhor do que eu, a pobre menina que
acabara de perder seu homem e o Sr. Brian. Andrew e eu combinamos fingir o
nosso namoro, assim como um dia eu fizera com você, bonitão.
Entretanto, Andrew nunca me olhara como um dia você me
olhou, e eu sabia que estava diante de um acordo verdadeiro. Seríamos grandes
amigos nos ajudando, pois eu sabia que quando você descobrisse que outro alguém
entrara em minha vida, você daria um jeito de me buscar de volta. Eu namorei
Andrew esperando você me resgatar.
Mas o tempo passou e nada de você aparecer. Ficamos
preocupados. Andrew então pensou que talvez um namoro não estivesse sendo convincente
o suficiente para trazer você de volta. E foi então que ele bolou este plano:
que se nós dois nos casássemos, tudo estaria resolvido. Você com certeza faria
com que nosso noivado acabasse, e Andrew, ao perder sua “amada” noiva, poderia
se recolher em tristeza e nunca mais estaria obrigado a aparecer com outra
mulher nas ruas. Seria como um amor que não se supera.
Neste meio tempo eu vendi a cafeteria, pois sabia que se o
plano funcionasse, nós precisaríamos fugir...”
- Paul, você está ouvindo o que estou lhe contando?
A verdade, meu caro leitor, é que eu parara de escutar a
partir do momento em que ela disse que o tal de Andrew era gay. A partir dali,
eu ficara duro e desejando Marrie, apenas a observando balbuciar as palavras.
- Não, Marrie, eu não estou lhe ouvindo... – respondi,
sorrindo para ela e segurando seu queixo com uma de minhas mãos. – Mas não se
preocupe, minha pequena, você terá a vida inteira ao meu lado para me contar a
nossa história. Quantas vezes você quiser.
Fizemos amor ali mesmo, dentro do carro emprestado e no meio
da estrada. O cheiro do xampu de Marrie penetrara pelas minhas narinas e eu
tinha a plena certeza de que se eu não encostasse em sua pele, se eu não
sentisse o meu eu ligado ao eu dela naquela hora, que eu não conseguiria
coragem para seguir viagem. E assim eu o fiz.
Depois seguimos viagem até a fazenda, e Marrie terminou de
me contar sua história. Vendera a cafeteria para fugir comigo, e pedira para um
dos amigos de Mr. Richard falsificar os nossos documentos. Não seríamos mais “Paul
e Marrie”. Seríamos “Brian e Margareth”, em homenagem ao dono da cafeteria da
cidade.
Senti um arrepio passar pela nuca, pois o Sr. Brian perdera
sua esposa muito cedo, mas não quis incomodar Marrie com qualquer pensamento
negativo meu. Estávamos em nosso melhor momento. Precisávamos só pensar em
quando ir embora.
Marrie sugeriu que voltássemos de madrugada até a cidade,
para que pudéssemos pegar o dinheiro que estava escondido e os nossos documentos.
Concordei com ela de imediato e arrumei as malas ao anoitecer.
Lembrei-me que meu avô tinha um cofre na biblioteca, e fui
até lá pegar o que estava guardado. Apesar de um pouco enferrujado, assim que
tentei pela terceira vez uma senha que lembrava de meu avô me contar, ele se
abriu e ali encontrei as joias da família. Não hesitei e nem pensei em meus
pais, apenas as peguei e coloquei dentro de minha mala.
Uma dessas joias levei até o nosso vizinho e a ofereci em
troca do carro. Era uma troca ridícula, pois a joia valia dez vezes mais que
aquele veículo usado, mas meu vizinho pareceu perceber de minha situação de
urgência e aceitou com um enorme sorriso a oferta que lhe fiz.
Marrie estava com uma calça e uma blusa minha, e deixou o
vestido na fazenda sem nenhuma vontade de carrega-lo de volta para a cidade. O
anel permanecia em seu dedo.
Quando chegamos, não demorou mais que meia hora para que
Marrie arrumasse suas coisas e pegasse o dinheiro e os documentos que deixara
escondido. Assim que entrara no carro de volta, eu lhe disse:
- Este foi sem sombra de dúvidas o plano mais insensato que
já ouvi em toda a minha vida.
- Acho que esse plano foi o único que já deu certo, bonitão.
Só lamento muito porque não pude interferir no seu julgamento perante o
Conselho, sei que vai ser muito difícil para você não trabalhar mais como médico.
- Nós iremos resolver isso, Marrie. – respondi, segurando
sua mão. – Nós iremos ser felizes juntos. Mas antes de ir embora, eu gostaria
que você tirasse esse anel de noivado da mão, - disse, enquanto delicadamente
puxava o anel de seu dedo. – e colocasse este aqui, o anel do noivo certo. -
coloquei a mão no bolso, e de lá tirei um anel que um dia fora de alguém na
minha família, e o coloquei na mão de Marrie. Ela estava boquiaberta.
- Nós vamos nos casar, Sr. Paul?
- Sim, Marrie. E mais do que isso, nós vamos voltar a ser um
só. – beijei sua mão, seus lábios e segui viagem com o carro.
Viajamos por dias intermináveis, até que atravessamos o
país, em busca de um novo lugar para morar. Estávamos com fome, e resolvemos
parar em um pequeno vilarejo para que pudéssemos almoçar.
- Paul, - Marrie sussurrou quando descemos do carro. – é aqui.
É aqui que vamos morar.
- Como você pode saber: - perguntei a Marrie.
Ela apenas me respondeu com um dedo apontado. A cidade era
composta de apenas uma rua, poucas casas e algumas lojinhas. E ali, bem no
centro, havia um local abandonado com um enorme cartaz pregado: “VENDE-SE ESTA
PADARIA.”
- Paul, nós podemos montar o nosso café aqui.
- Você só pode estar brincando, Marrie... Nós mal conhecemos
este lugar. E um café jamais daria certo em uma cidade deste tamanho! Isto
daqui é praticamente um vilarejo!
É, meu caro leitor, e não é que este café deu certo? Marrie
estava encantada com o lugar e conseguimos falar com o dono no mesmo dia. Este
se cansara do marasmo daquela cidade e resolvera se mudar, e há anos tentava
vender o seu estabelecimento, infelizmente sem obter sucesso algum. Como
estávamos com dinheiro vivo, conseguimos marcar uma reunião para o dia
seguinte, e “Brian e Margareth” compraram o que se tornou a nova “Cafeteria de
Sr. Brian.”
quarta-feira, 26 de março de 2014
PAUL E MARRIE - Cap. 24: O CASAMENTO DE MARRIE
(FOTO: http://www.flickr.com/photos/46929568@N04/4474420906/sizes/m/in/photostream/)
Assim que entrei no salão de entrada pela fazenda,
deixei-me levar pela euforia. Abracei meus empregados, gritava que tinha sido
absolvido, que recebera uma segunda chance da sociedade, e que agora estava
pronto para lutar e ter de volta o amor de minha Marrie.
A maioria dos empregados se assustara com o meu
carinho e felicidade repentina, pois não era um hábito meu ser sorridente desde
que chegara à fazenda. Todos eles, com exceção do menino que me levara até a
cidade, pareciam se comover com a minha absolvição e sorriam para mim enquanto
eu pulava de alegria.
Quando todos me deixaram a sós, lá estava ele, o
empregado que me levara à cidade, em pé, esperando que eu me acalmasse para que
pudesse conversar comigo:
- Sr. Paul, se me permite uma opinião...
- Claro, meu rapaz, hoje você pode falar o que
quiser... nada vai tirar a minha alegria! – respondi, convidando-o com a mão
para que se sentasse ao meu lado.
- É que...
- Vamos, pode falar, não precisa ter medo. Voltei a
ser o “Doutor-Anjo”, só que sem licença para exercer a Medicina. – continuei brincando.
- Eu não tenho nada a ver com a vida do Sr., muito
menos com essa tal de Marrie que nós fomos atrás na cidade, até porque eu nem
conheço ela a fundo. Mas, quando ouvi o Sr. comentar agora que iria lutar pelo
amor dela, minha consciência pediu para que eu conversasse com o Sr., pois não
acho certo isso não...
- Por quê? Não tenho o direito de lutar por ela?
Logo ela, que eu amo tanto?
- Olha, meu chefe, eu mal sei ler e escrever, e
nunca tive vontade alguma de frequentar a escola. O que quero dizer é que não
tenho estudo nenhum, e às vezes nenhum saber para lhe dizer o que vou dizer. Mas
a meu ver, você TINHA o direito de lutar por ela. Tinha no sentido de não ter
mais. Porque eu acho um absurdo o Sr. resolver ir agora atrás dela. Agora que
ela arrumou um chapa legal, o camarada é Doutor..
- Eu também sou.
- Não, Sr. Paul. O Sr. não é doutor mais. E o Sr.
nunca se noivou com Marrie. Acho injusto, depois de tudo o que ela passou,
poxa, ela tirou a roupa aqui na frente de todo mundo, e o Sr. mandou ela
embora. Não sei, chefe, eu posso estar muito errado, mas para mim, se você a
ama de verdade, você deve deixar essa tal de Marrie casar e ser feliz.
De imediato, nada respondi. Sabia que aquele ser
tinha razão.
- Até porque, Sr. Paul, o que o Sr. poderia oferecer
a ela, a esta altura do campeonato? Você pode ter ser sido julgado inocente,
mas ainda tem gente atrás de você. Logo, logo, você vai ter que ir embora
daqui, não vai poder arrumar um emprego, vai ter que viver fugindo. E ela acabou
de reformar a cafeteria, tem o próprio negócio, não sei ela merece passar o
resto da vida fugindo com você. Peço desculpas se eu disse alguma coisa que te
ofendeu, mas é o que eu acho.
Era o que ele achava, e foi o que eu acabei acatando
como certo. Realmente, o que eu, um ex-médico com a licença cassada, fugitivo
por ter matado um traficante, tinha a oferecer para Marrie? Doeu saber que eu
havia perdido o jogo de vez, mas sabia que esta era a única solução: se eu
amasse Marrie de verdade, eu a deixaria se casar e ser feliz.
E por mais seis meses vivi a vida que estava levando
antes de ir ao Tribunal: bebendo de manhã, à tarde e à noite, lendo os livros
da biblioteca de meu avô, perambulando pelos enormes cômodos do casarão,
contando quantos passos dava de um lado até o outro, andando a cavalo, entre
outras coisas mais.
Nestes seis meses, nenhuma notícia de Marrie e nem
de meus pais. Eu passava o dia inteiro me sentindo abandonado, como se eu
tivesse morrido e alguém tivesse esquecido de me avisar. Havia horas em que a
minha única vontade era morrer, para ver se assim eu encontrava a paz.
E passados esses meses, estava eu, sentado na
escada, à espera de Larry, meu fiel empregado, trazer cigarros da cidade para
mim, quando o avistei chegando e gritando, antes mesmo que descesse da carroça:
- Sr. Paul, é hoje! É hoje, Sr. Paul! É hoje o
casamento de sua Marrie!
Senti meu coração bater e parar, e um arrepio subiu
pela minha nuca.
- A Igreja está sendo arrumada, flores, tapete
vermelho e tudo mais! Acho que se o Sr. sair daqui agora, dá tempo de chegar e
ver a cerimônia, mas o Sr. vai ter que ir de carro.
- Eu não vou assistir Marrie se casar com outro
homem, Larry. Estou muito bem aqui.
- Sr. Paul, eu acho que o Sr. deveria ir sim. Nem
que fosse para ver Marrie pela última vez. E desencanar, sabe, o Sr. fica aí o
dia inteiro, nessa tristeza toda, acho que o Sr. deveria ir.
E fui. Fui porque realmente estava louco para ver
Marrie, e porque Larry conseguiu arrumar um carro emprestado para que eu fosse
até a cidade. Fazia mais de um ano que eu não dirigia, e eu corria tanto, que
sentia um frio na barriga como se estivesse em uma montanha russa. Estava vivendo um ‘trhilling’.
Ao chegar na cidade, a grande decepção: quando
entrei na Igreja, esta ainda estava vazia, e como estava barbudo e usando um
chapéu, mais uma vez ninguém me reconheceria. Foram longos os minutos até que
os convidados começassem a chegar e até que Marrie entrasse no altar.
Vi Marrie
entrar na Igreja. Nem em meus pensamentos ela conseguira ficar tão bela, tão
esplêndida, tão intocavelmente perfeita como ela estava naquele vestido. Seus
cabelos levemente ondulados deixaram que o véu de noiva pairasse delicadamente
sobre sua testa.Mesmo estando de longe, eu poderia sentir suas mãos suarem,
pedindo que alguém a ajudasse a perder aquele nervosismo, aquela ansiedade de
viver o momento mais importante de sua vida. E agora era a hora de desfrutar
aquele momento.
Pois
aquele era seu sonho, estar ali, diante da sociedade, mostrando que era digna e
católica como qualquer outra pessoa poderia ser. Mr. Richard estava a acompanhando,
como um pai faria com a sua filha, e era completamente perceptível em seus
olhos o orgulho que estava sentindo de Marrie.
Marrie entrou
com ensaiados passos largos, suaves, como se ninguém pudesse ouvir seus
pequeninos pés tocarem o tapete vermelho. Tinha em seus lábios um sorriso
incrivelmente trêmulo, verdadeiro, emocionado. Carregava com força o buquê de
rosas vermelhas, provavelmente colhidas por ela mesma.
Observei
Marrie com lágrimas nos olhos, sem fazer qualquer esforço para tentar
impedi-las de cair. Aquela mulher tão linda e tão pequena era a mulher da minha
vida, era o amor que me fizera mudar o que os homens pensavam ser imutável.
Cheguei tão perto de seus cabelos que consegui sentir o cheiro de seu xampu.
Era o xampu que lhe dera de presente anos atrás, e que sorrindo, um dia ela me
alegara que só o usaria em ocasiões especiais.
Aqueles milésimos
de segundos de olhos fechados sentindo o cheiro de seu cabelo duraram horas em
meu subconsciente. Até que abri os olhos e continuei observando Marrie chegar
até o seu futuro marido.E fui embora. Porque não precisavam do meu amor naquele
lugar.
Quando
saí da Igreja, deparei-me com uma poça d’água e fiquei alguns instantes
observando o meu reflexo naquela água um tanto quanto suja.
Eu tinha
olhos grandes. Olhos redondos, grandes e observadores. E o que mais me
perturbava era ver ali, em frente aquela Igreja, o que realmente estava
acontecendo comigo. Era algo além de ver, era entender que o que me incomodava
tanto não era o fato de minha carteira estar vazia, de eu não ter minha própria
casa ou porque nunca mais poderia exercer a Medicina. O que me perturbava, o
que me incomodava, o que confesso que me doía profundamente era encarar-me só.
Era encarar-me só ao lado de aproximadamente 450 pessoas, em uma cidade de 800 mil habitantes, em um país que pouco me importava quantas pessoas o habitavam. Porque ninguém me interessava, ninguém além daquela mulher que estava se casando ali, ao meu lado.
Ainda conseguia sentir o cheiro daquele xampu vagabundo que lhe dera de presente, no seu 23º aniversário. E poderia ter lhe dado uma pedra, um alfinete, ou até mesmo uma bomba, e teria certeza de que Marrie arrumaria alguma forma de levar consigo para o altar.
Porque Marrie me amava. Porque Marrie me amava desde o 1º dia em que me vira, em que apenas ela me vira. E marrie via-me como ninguém. Marrie enxergava todos os meus lados negros, doentios, malucos, e os amava, os idolatrava, os desejava perto dela. Marrie desde o primeiro dia sabia que eu seria o homem de sua vida. O Paul de sua vida. O seu marido, o seu amigo, o seu namorado, o seu amante, o seu colega, quando quisesse. Quando precisasse. Quando pedisse, ou melhor, assim que pedisse.
Mas a realidade não fora essa. Eu só oferecera durante os nossos poucos anos de relacionamento o meu lado negro. E mais nada. Só entreguei à minha pequena Marrie parte do meu lado obscuro para que ela amasse e se satisfizesse com ele. E assim Marrie o fez.
Entretanto,
não bastava para mim ver aquela mulher ser feliz com tão pouco. Tentei dar-lhe,
milhões de vezes, algo que pudesse contar sem vergonha alguma para outras
pessoas, algo completamente diferente do que estava acostumada a receber.
Porém, acabei fazendo de Marrie minha esposa, minha namorada, minha amiga,
minha amante e minha colega nas horas em que eu a desejava, a chamava. Assim
que a chamava. Fiz dela tudo, menos uma mulher amada.
Eu estraguei a vida de Marrie. Durante estes poucos anos, aos poucos, com longos intervalos de tempo, eu destruí, sem entender o porquê, o pouco de vida que restava naquela mulher desorientada, esperançosa e triste.
Não entendi o que dava errado, o motivo pelo qual não conseguia transmitir meu amor para ela, falar de amor com ela, ser amor perto dela. Cheguei à conclusão que entre nós, o amor não bastava. Que entre nós, o amor acabara tornando-se algo supérfluo, banalizado pelas nossas mentiras.
Lembrei-me
também de Marrie na fazenda, indagando-me se eu realmente a amava, se eu era
homem o suficiente para deixar meu orgulho de lado e amá-la de verdade. Eu, meu
caro leitor, não tinha qualquer dúvida a respeito dos meus sentimentos, apenas
não tinha maturidade suficiente para saber se meu orgulho era mais importante
que o meu amor. Se o meu orgulho era mais importante que minha Marrie.
E hoje, no tal grande dia, eu derramara lágrimas ao vê-la entrando, usando o xampu que eu lhe dera, para casar com outro homem. Um grande médico, exatamente como eu fora há anos.
Pensei em ir até um bar, beber uísque até ficar insuportavelmente bêbado e voltar para a fazenda, onde poderia me afundar em uma eterna melancolia.
Porém, não saí do lugar. Pois aqueles olhos, aqueles mesmos grandes, redondos e observadores olhos, perceberam algo que até então eu não via antes. As minhas conclusões estavam erradas, o nosso amor era suficiente para manter-nos felizes, eu que fora cego e tolo o suficiente para enxergar as coisas da maneira como o meu orgulho e covardia queriam, da maneira que minha autossuficiência emocional pedia.
Eu não me deixei amar aquela mulher. Eu guardei todo aquele amor dentro do meu peito para que a perdesse e voltasse a ser o Paul de sempre, o Paul que sabia sorrir, mas que não sabia ser feliz.
Tinha ciência de tudo agora. Do quanto eu errara, falhara e perdera. Tinha ciência de que agora era tarde demais e que só provaria ter um real amor por Marrie se a deixasse ser feliz com o seu futuro marido. Também tinha ciência de que Paul não seria mais Paul se não tivesse Marrie ao seu lado. Tinha ciência de que um ser humano prestes a fazer 36 anos não muda do dia para a noite, e ainda tinha os meus instintos egoístas. E por estes instintos que dei meia volta e entrei na Igreja novamente.
Voltei para buscar Marrie. Entrei pelo mesmo tapete vermelho que ela entrara e com uma determinação no olhar, fui atrás de Marrie como um caçador vai atrás de sua presa.
Todos os convidados, padrinhos e madrinhas olharam e minha direção. Depois o padre, e enfim, os noivos. Marrie arregalara seus olhos de tal maneira que pensei que fosse desmaiar ali mesmo. Mas Marrie firmou-se em pé, e me disse:
- Você é
um filho da puta de um egoísta, Sr. Paul! Como tem coragem de estar aqui?
- Você
tem razão, Marrie... – disse, tremendo os lábios. – Eu sou um filho da puta de
um egoísta, e amo você demais para deixar você se casar com outro homem. Eu dei
esse xampu para que você fosse minha mulher. E eu estou aqui para que você a
seja.
Marrie, como eu, tremeu os lábios, e não disse nada. Também não esperei que respondesse, peguei-a no colo e coloquei-a em meus ombros como se estivesse sequestrando-a. Fechei a cara para todos os convidados, inclusive para o noivo, e saí da Igreja com a noiva em meus braços.
E em nenhum momento pensei em desistir, porque ao ter Marrie comigo, vi que ela sorria. E aquele sorriso... era de perdão.
quarta-feira, 19 de março de 2014
PAUL E MARRIE - Cap. 23: O TRIBUNAL DO JÚRI
(FOTO: http://www.flickr.com/photos/pablo_costa/4965086018/sizes/z/in/photostream/)
O engraçado foi que aquela xícara de café teve o efeito
inverso no meu corpo: assim que a terminei, caí no sono, e só acordei quando o
Sol nasceu. Era o dia do meu segundo julgamento, em que seria julgado não mais
pelos meus colegas de profissão, mas sim pelas pessoas que na época eu
classificava como “comuns”.
Mais uma vez entrei no camburão algemado, e para a minha
surpresa, a cidade toda estava ali para assistir meu julgamento. Uma
aglomeração de mulheres com cartazes levantados, todos os meus colegas do
hospital, e, à frente de todos, estava Mr. Richard, fumando o seu charuto, e me
esperando descer do carro da polícia.
Em meio a toda aquela confusão, só depois que desci do
camburão é que percebi que as mulheres que estavam a postos segurando cartazes,
eram as prostitutas de Mr. Richard, e consequentemente, as amigas de Marrie.
Todas estavam gritando um hino, que me fez rir antes de subir as escadas do
Tribunal:
- INO! INO! INO! DOUTOR- ANJO NÃO É ASSASSINO! INO! INO!
INO! DOUTOR ANJO NÃO É ASSASSINO! – todas em coro, clamando Justiça em meu
nome.
Marrie, obviamente, não estava junto com elas, mas assim que
entrei no salão do Tribunal do Júri, senti o cheiro de seu xampu. Lá estava
ela, observando a minha entrada com muitas lágrimas nos olhos, ao lado de seu
noivo.
Pude então observá-lo com calma. Assim como eu, era alto,
forte, e tinha boa aparência, porém anos mais jovem, eu poderia dizer que ele
tinha a idade de Marrie. Seu cabelo estava brilhando, milimetricamente
penteado, sem nenhum fio fora do lugar. Enquanto caminhava ao lado dos
policiais, ele me olhava de cima embaixo, como se estivesse fazendo um raio-X
de quem era o ex-alguma coisa de sua atual Marrie.
Sentei, bufando, na cadeira de réu que fora posta para mim.
Eu sabia que também seria condenado naquele Júri e que provavelmente meu futuro
próximo seria acordar e dormir naquela cadeia imunda, e receber os cafés de Marrie.
Pensei em que o seu noivo pensava a nosso respeito, se ele se sentia
confortável em estar ali, no meu julgamento, ou se estava lá para se vangloriar
em ver seu adversário perder a mulher que ama para sempre, ao vivo e a cores.
Fui despertado de meus pensamentos, pois o julgamento
começara.
E ao contrário do que ocorrera no Conselho Federal de
Medicina, lá sim foram ouvidas as testemunhas, no caso os meus colegas de
hospital, e fiquei completamente incrédulo com o que foi dito ali: que eu
sempre tivera um comportamento estranho, agressivo, que não era a primeira vez
que falava em assassinato, e que não, que ninguém mais confiaria na minha
capacidade médica e ética para exercer minha profissão.
Eu praticamente carregara no colo todos aqueles profissionais
que estavam prestando depoimento. Dei aula para alguns, auxiliei alguns outros
dentro do hospital, mas, para todos eles, eu sempre os tratara como amigos. E
ali, naquele momento, apenas para não correrem o risco de serem acusados,
inventaram mentiras sobre o que aconteceu naquele dia para se verem livres de
mim. De repente, todo mundo se esqueceu que um dia eu fora o “Doutor-Anjo”.
Meus pais também estavam presentes, juntamente com a
plateia, em lado oposto ao que estava Marrie. Minha mãe estava arrumada como se
estivesse indo a um baile de gala, e meu pai tinha o sapato lustrado, assim
como o do noivo de Marrie. Os dois estavam ali apenas para manterem as
aparências e tentarem mostrar que éramos uma família tradicional e respeitada
na cidade. Contudo, todos pareciam também ter se esquecido disso.
E então, chegara a minha vez de falar. Meu advogado me
orientara a dizer que eu fora induzido por Marrie, que ela durante todo o tempo
que moramos juntos implantara esta ideia na minha cabeça, e que no dia de
realizar esta cirurgia eu estava sem dormir devido a uma crise histérica que
Marrie tivera. Resumindo, eu deveria fazer com a minha pequena o que os meus
colegas estavam fazendo comigo. Era para ser um “salve-se quem puder”.
Ainda algemado, tirei meus óculos do rosto antes de começar
a falar:
- Ai ai... eu mal sei por onde começar. – meus olhos
encheram-se de lágrimas ao ver Marrie boquiaberta me assistindo. – Mas a
verdade é uma só: eu matei sim aquele homem, como já está provado pelos laudos
médicos. Eu coloquei sim as minhas mãos em suas entranhas para que ele perdesse
a vida. O que eu não posso dizer a vocês, jurados, é que eu sempre tive
comportamento agressivo, ou que eu ameacei os meus colegas de profissão. Isso
não, isso eu nunca fiz e não vou mentir aqui. Para falar a verdade, acho que
seria muito melhor se eu tivesse apenas um desvio de personalidade. A minha
história começa muito antes deste dia da sala de cirurgia...
Fechei os olhos para me revelar, e assim fiquei nos
primeiros segundos quando disse:
- Eu, Dr. Paul Robert, também conhecido como “Doutor-Anjo”,
era homossexual e tinha um relacionamento estável com o Dr. David, médico-chefe
de nosso hospital. – não esperei que os gritos de espanto cessassem para que
continuasse com o meu depoimento. – Sim, eu queria dizer a todos que estão
presentes aqui que eu já dei e já comi o cú do médico-chefe de nosso hospital.
E que gostei disso por muitos e muitos anos. – observei meus pais se levantarem
às pressas e irem embora do Tribunal. – Mas acontece que o Dr. David,
médico-chefe de nosso hospital, – fazia questão de repetir o nome e cargo, para
que ninguém jamais se esquecesse dele. – jamais queria ter sua reputação
manchada perante a cidade, e perante o seu cargo. Portanto, jamais assumimos o
nosso relacionamento.
“E em meio uma de nossas discussões, David prometeu se
divorciar, mas me pediu um tempo para que ele pudesse se organizar. Enquanto
isso, continuaríamos a nos encontrar às escondidas, e eu arrumaria uma nova
namorada para despistar possíveis boatos a nosso respeito. E assim fiz, meus
caros jurados.
Fui até o conhecido bordel de nossa cidade, porque queiram vocês
ou não, o bordel de nossa cidade continua ativo e por sinal, muitíssimo
frequentado, inclusive por pessoas conhecidas daqui, o que não vem ao caso. Lá,
neste bordel, Mr. Richard, que está presente neste recinto, indicou-me Marrie,
também prostituta de lá – mais uma vez, os gritos de espanto, menos de seu
noivo, que permaneceu me encarando e segurando a mão de sua noiva. – para ser
minha nova namorada. Como sempre trabalhara com o rosto coberto, devidas às
queimaduras que tinha por toda a face, retiradas há alguns anos por uma
reconstrução de face, ninguém nunca a reconheceria fora dali. E foi assim que
fiz. Levei Marrie embora daquele bordel para ser minha namorada de mentirinha.
No entanto, desde o primeiro dia, - as lágrimas começaram
escorrer. – Marrie sempre fora a minha mulher. Desde o primeiro dia em que
busquei essa mulher que também está diante de vocês, eu não consegui mais amar
David. Eu não consegui mais ser o mesmo com ele, porque ela já havia tomado
conta daquilo que um dia eu chamei de coração.
Marrie vocês conhecem bem como ela é. Ela é exatamente como
parece ser. É esta mulher que conseguiu criar essa beleza esplêndida, em meio a
tantas cicatrizes, é a mulher que fez o Sr. Brian voltar a sorrir, a ouvir
música; Marrie foi a pessoa que me mostrou o que é um dia feliz. Eu não sabia
qual era o valor de um xampu até o dia em que ela me pediu um de presente.
Então como deixar essa mulher ser feliz pelas metades? Como
amar esta mulher pelas metades? Porque o pouco que ela me dera, me fez
completo. Me fez conhecer um lado meu que eu mal sabia que existia. Me fez ter
valores, me fez ser feliz, e, acima de qualquer coisa, me provou que o único
anjo que existe nesta face da Terra é ela e somente ela, e não eu.
Eu falhei muitas vezes com Marrie e sei que foi isso que nos
afastou. Que foi isto que me fez perde-la para outra pessoa. E se querem saber,
não, ela jamais me pediu para que eu o matasse. Eu sabia tudo o que ela passara
na mão dele, e não é preciso mais que dois olhos para ver o que ela passou na
mão deste homem. Este homem tirou até o útero de Marrie. E quando eu tive a
oportunidade, sim, eu tirei a vida dele.
Porque uma vida não se mata apenas com a falência dos
órgãos. Uma vida se mata quando se tira a oportunidade de uma outra pessoa ser
feliz, de viver, de fazer aquilo que gosta. Eu sinceramente pouco me importo
com o resultado deste Júri, porque também já me considero morto. Nunca mais
poderei exercer a Medicina, e mesmo que saia daqui livre, terei de viver o
resto de meus anos escondido, pois existem pessoas aí fora que querem me matar,
e provavelmente vão acabar conseguindo.
O que quero dizer a vocês, é que hoje foi o dia em que eu
escolhi me abrir perante a minha cidade. Ontem foi o dia em que perdi tudo, e o
que mais me impressionou foi o fato de continuar vivo, de continuar respirando,
e de ainda ter que lidar com a minha consciência por todos os maus atos que já
fiz.
Não me sinto culpado pela morde de “ele”. Ele morreu porque
tinha morrer, e se eu o matei naquela sala de cirurgia foi porque ele mereceu.
Não me considero Deus, nem algo perto desta Santidade, mas sou ser humano e vi
o desespero nos olhos da minha mulher quando ela soube que ele estava de volta.
Eu fiz o que devia ser feito. Se por isso serei condenado, cumprirei a minha
pena.
Só não quero que me enxerguem como um homem mal. Não é
possível que do dia para a noite eu deixe de ser o “Doutor-Anjo” e passe a ser
o “Doutor-Demônio”. Pois nesta mesma sala de cirurgia em que matei “ele”,
também salvei muitas pessoas. Talvez alguma delas sejam conhecida de vocês,
talvez não. Posso ter usado a minha mão para um homicídio, contudo, nunca
faltei com a minha obrigação de salvar vidas.
Eu não quero uma segunda chance de vocês. Eu só queria esta
oportunidade para dizer a vocês e Marrie, que eu me assumi e não tenho mais
nada a esconder de ninguém.”
Após a minha fala, advogado e promotor discutiram por alguns
minutos, e logo houve o recesso para a decisão.
Foram três longas horas de espera, de cansaço, pois
permaneci em pé e algemado, à espera de uma sentença que seria tão óbvia como a
que recebera no dia anterior.
Enfim, me chamaram para voltar ao salão do Tribunal. Entrei
cabisbaixo e sem esperanças, e não busquei os olhos de Marrie no meio da
plateia. Seria muita humilhação vê-la chorando enquanto sairia dali preso.
Não tenho hoje conhecimento jurídico algum, e tinha muito
menos ainda naquela época, portanto, a única frase que eu entendi da longa
sentença fora que o Júri me declarara inocente.
Enquanto os policiais tiravam as minhas algemas, não
consegui ter nenhuma reação. Não sorri, não gritei, não pulei, apenas fiquei
estático, incrédulo, sem entender como era possível que aquelas pessoas me
considerassem inocente. Como era possível eu perder o meu diploma de Médico
sendo julgado por Médicos e continuar sendo cidadão de direitos perante pessoas
que, a meu ver na época, de nada entendiam da vida.
- Por quê? Por que eles me absolveram? – perguntei ao meu
advogado.
- Dr. Paul, eu não faço a menor ideia. Acho que eles
entenderam você. Mas você sabe que mesmo declarado inocente aqui, você vai
correr perigo para sempre nesta cidade. Você precisa ir embora para a fazenda
mais uma vez.
- Tudo bem. Antes eu só gostaria de dar uma palavrinha...
- Comigo, Sr. Paul? – respondeu-me Marrie, friamente. – Não tenho
mais nada para conversar com o Sr. Vim aqui por simples solidariedade à sua
pessoa, e o que você fez? Expôs-me diante toda a cidade. Apenas lhe digo, se
era este o seu plano para acabar com o meu noivado, foi muito fraco! Como você
tem o costume de dizer, “passar bem”.
E ao se aproximar de mim, ao invés de me dar um beijo na
bochecha, Marrie com delicadeza, beijou-me o canto da boca e, antes de ir
embora, deu-me uma piscadela mostrando-me uma coisa: eu precisaria de um bom
plano para tê-la de volta. Mas que ainda havia esperança.
quarta-feira, 12 de março de 2014
PAUL E MARRIE - Cap. 22: O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
(FOTO: http://www.flickr.com/photos/cnj_oficial/9401169867/sizes/z/in/photostream/)
O Conselho Federal de Medicina me julgaria na segunda-feira,
e o Tribunal do Júri aconteceria na terça. Coincidência ou não, o meu destino
seria traçado em apenas 48 horas.
Meu advogado me esclarecera tudo: quais eram as minhas
chances, como deveria agir e o que deveria falar para comover os jurados, os
médicos da banca, mas que infelizmente minhas chances eram muito pequenas. Como
se eu já não soubesse disso.
Teria uma longa semana pela frente, semana a qual só me
trouxe as péssimas recordações destes últimos anos de minha vida. Entretanto,
fora esta semana de reflexão que me fizera enxergar que Marrie nunca fora
culpada pelo meu crime. Marrie realmente só exigira um xampu de mim. E mais
nada.
A polícia chegou a fazenda juntamente com o meu despertador:
4 horas da manhã. Apesar da viagem de carro até a capital do país, onde o
Conselho Federal tinha sede, seria longa e para minha segurança, deveríamos
chegar antes da mídia e dos possíveis comparsas do “ele”.
Até o momento, não havia sinal nem de meus pais, nem de meu
advogado, e imaginei que eles já estivessem na capital a minha espera. Desde
que quando chegara à fazenda não tivera contato com nenhum deles. Era como se
não mais eu estivesse fugindo do mundo, mas o mundo estivesse fugindo de mim
agora.
Fui algemado antes de entrar no camburão, e assim segui a
longa viagem até o Conselho Federal de Medicina. Estava sendo tratado como um
grande criminoso foragido, que apenas entregara o seu endereço no dia do
julgamento para se livrar de uma prisão provisória. Ninguém me enxergava como
um herói, como um homem corajoso que retirara do mundo um sociopata capaz de
dominar uma cidade inteira, tendo como nome apenas o pronome “ele”. Não fora
assim que eu imaginara o desfecho da minha reputação: como um homem que matou o
traficante para salvar a puta. A puta que agora iria se casar com o novo “eu”
contratado para o hospital.
Assim que chegamos, uma pequena surpresa: meu advogado já
estava na porta me esperando, juntamente com Marrie. E nada de meus pais. Não
entendi porque Marrie estava ali. Não depois de toda a nossa última conversa, e
principalmente pelo fato de ela não ser médica e não poder participar do
julgamento. E por falar em médico, comecei a me questionar onde estaria David
naquele momento, pois pensava que ele seria uma pessoa que não perderia por
nada a chance de me ver ser julgado pelo Conselho Federal.
- Seus pais não puderam vir, Dr. Paul. Mas lhe garanto que
eu farei todo o possível para que você permaneça sendo médico e trabalhando no
hospital. – disse meu advogado, cumprimentando-me desajeitado, por causa de
minhas algemas.
Marrie já estava chorando.
- Eu sei que eu não posso entrar, Paul, mas ao mesmo tempo
eu sei que você precisa saber que ainda existe alguém lutando por você. E mesmo
você não merecendo, eu estou aqui torcendo para que tudo dê certo. – fez uma
pequena pausa. – E também estou aqui para lhe dizer que do fundo do meu
coração, Paul... eu sinto muito. Eu sinto muito por tudo, e se pudesse, eu
preferia estar sendo julgada no seu lugar.
Olhei a mão de Marrie e lá estava um novo anel de noivado,
ainda maior do que o que ela jogara no meio do campo. Pelo visto estava tudo
bem entre ela e o noivo.
- Não foi culpa sua, Marrie. Eu sempre soube disso. Não foi
culpa sua. – disse enquanto subia algumas escadas de forma forçada, pois os
policiais me empurravam para que eu entrasse logo. Marrie gritou e eu ouvi
enquanto estava de costas para ela:
- Ontem à noite eu coloquei um sonífero na bebida de David!
Ele vai dormir por uns dias... e não vai atrapalhar você desta vez. Boa sorte,
bonitão! Deus lhe abençoe.
Não pude deixar de rir ao imaginar Marrie cometendo esta
pequena maldade, um tanto quando necessária para que eu pudesse entrar menos
nervoso naquela sala. Mais uma vez Marrie salvando meu dia, sem precisar de
muito. Aquilo me fez entrar com esperança para o julgamento.
Julgamento este que fora completamente arbitrário. Nunca
havia presenciado antes um julgamento administrativo, e minha decepção foi
tamanha, porque ali nem eu, nem meu advogado fomos possibilitados de falar.
Apenas ouvimos, ouvimos e ouvimos até a prolação da sentença.
Nenhum dos médicos da banca queria saber o porquê, como e
quando aquilo aconteceu. Nenhuma das enfermeiras presentes no dia foi
requisitada como testemunha, porque ali nada daquilo era necessário. Estávamos
diante de uma mesa que só leu laudos e perícias, constatando que sim, o DNA
encontrado nas vísceras do cadáver era o meu, que os órgãos foram esmagados por
uma mão esquerda do tamanho da minha, e que sim, eu estava completamente
sóbrio, no exercício de minha função quando isto aconteceu. E em quarenta
minutos de sessão, tudo estava decido: Eu, Paul Robert Mars, não poderia mais
exercer a Medicina. Em quarenta minutos de leitura de laudos e em três segundos
de sentença, a minha carreira acabou.
E como meu endereço fora revelado à polícia para que eu
comparecesse ao primeiro julgamento, saí dali, mais uma vez, escoltado e
algemado, no entanto, o meu destino agora era a prisão de minha cidade.
Fui incapaz de olhar na direção de Marrie, ainda me
esperando do lado de fora do Conselho Federal. Quando entrei no camburão para
ir embora, olhei de relance para sua direção e vi que estava de joelhos, aos
prantos, implorando provavelmente para que revessem a minha decisão a alguns
dos médicos que estavam na banca. Fomos embora sem que eu pudesse ver o que
aconteceu.
Só quando troquei minha roupa e deixei meu relógio e sapatos
e fui para minha cela é que percebi o rumo que as coisas estavam tomando.
Durante toda a viagem minha mente dera um pane e não conseguira pensar em mais nada
que não fosse Marrie tirando a roupa na minha frente na fazenda e me dizendo
que eu iria perder a Medicina, e que isso não seria o pior de minha vida. Que o
pior já estava acontecendo há muito tempo.
Talvez fosse por isso que eu não estivesse tão assustado,
nem tampouco decepcionado. Alguns poderiam dizer que “a ficha ainda não tinha
caído” para mim, mas a verdade é que mais uma vez eu estava sendo o Paul
conformado de sempre. Porque uma parte de meu cérebro estava se sentindo
plenamente agradecida pelo fato de não quererem ouvir a minha versão, de não
quererem saber que Marrie era uma prostituta a qual eu me apaixonei, e,
principalmente, assim eu não precisaria contar a ninguém que eu era um
homossexual que se refugiou em um amor comprado. E que de repente se tornou
verdadeiro.
É, meu caro leitor, eu precisei ficar dentro de uma cela
imunda, cheirando a suor e mijo, para que descobrisse que o meu amor por Marrie
era verdadeiro. Era a única certeza que tinha ali dentro. Porque mesmo diante
de todos os fatos, de todos os meus pesadelos tornando-se realidade, uma coisa
dentro de mim não mudava: eu não me sentia arrependido por ter matado “ele”. Eu
não me sentira arrependido por ter matado ele com as minhas mãos nenhum dia.
Eu, por mais ódio e revolta que sentisse pela minha atitude,
arrependimento não me acontecera, porque Marrie não teria mais problemas.
Marrie, no final das contas, estava bem.
Ela teve a oportunidade de seguir a sua vida fora da
prostituição, dera continuidade a cafeteria de Sr. Brian e agora estava noiva
de um homem que certamente estava morrendo de amores por ela. Afinal, quem não
estaria? Eu, que era homossexual desde os 17 anos de idade, que estava preso, e
provavelmente passaria umas boas décadas condenados após o dia seguinte estava,
imagina então alguém que pudesse amá-la com o coração aberto? Imagina então um
médico que não conhecia ninguém na cidade, tê-la apresentada pelos olhos de
Marrie. Pelas mãos de Marrie. Pela voz de Marrie.
Se eu que estava completamente perdido, um dia tivera a
chance de deitar-me ao seu lado, imagina então alguém que se ajoelhasse diante
dela e a lhe pedisse a companhia até a morte?
Ele sim seria um homem feliz. E por mais que me doesse, se o
noivo de Marrie fosse feliz ao lado dela, Marrie automaticamente seria feliz
também. Logo, logo, Marrie haveria de me esquecer. Assim como os meus pais já
haviam feito.
Agachado, sentindo a textura úmida daquela parede sem
reboco, enquanto ouvia por cima os diálogos dos outros presos, chegou um
policial e me chamou para a grade da cela:
- E aí, “bonitão”, há há há. – disse, satirizando o apelido
que Marrie me dera. – A ruivinha tatuada trouxe um cafezinho para você. – e entregou-me
uma xícara com o pires.
Era o café que Marrie sempre me levava no meio dos plantões.
Amargo, com um pedaço de chocolate derretido. “Para me dar forças pro dia que
estaria por vir.”
sábado, 8 de março de 2014
PAUL E MARRIE - Cap. 21: E agora?
(FOTO: http://www.flickr.com/photos/raizdedois/2641596846/sizes/z/in/photolist-52qSHd-5eQUMP-5jC1XV-5GpXoS-5XfHSN-61G7eT-699esr-6kCtvp-6rTHZu-6x5GdX-6yAiMX-6Ag985-6LwKBQ-6V1oQB-6V1qbM-6V1rdT-6V5uv9-6V5xGj-72phxx-73gCeW-7ajRaF-7w99pH-9vkjNX-btnnSb-bNQXTv-8bd71W-9vok8N-8bs2Rv-98zCBV-bJPVnn-bvVb6o-bvVanU-9DDXWK-9yx8WE-drkyvH-drkySc-drkJqJ-8khE6J-8kesW4-aYG2hR-8kesDn-c4Wyzm-8khEQb-8ketnX-9Dh9tE-eqnFHt-eqnFz4-9uQUAy-9rc9AY-9mdTSa-8mCCWj/)
‘E agora?’ Essas eram as duas palavras que me acompanharam
enquanto voltava para a casa naquela carroça balançando. Minha Marrie estava
noiva de um babaca, e eu a beira de perder o direito de exercer a Medicina. E
agora?
Senti vontade de fugir, mas sabia que não tinha nenhum lugar
em mente. Porque na verdade, a minha intenção era sumir, desaparecer, evaporar.
Nada mais faria sentido para mim depois dos dois julgamentos que estariam por
vir. Não havia escapatória para um assassinato a sangue frio. Ainda mais por um
assassinato em vão, já que Marrie agora estava noiva.
Quis também conversar com o empregado que me levava de
volta, mas sequer sabia o nome dele. Não sabia o nome de ninguém que morava
naquela casa, simplesmente os odiava, odiava o lugar e tudo o que o rodeava. Eu
queria voltar para os braços de Marrie.
E após as longas três horas de viagem, eu me sentia exausto,
como se tivesse ido a pé para aquela viagem frustrada. Desci da carroça e
sentei-me nas escadas que davam para o casarão. Precisava fumar.
A cada tragada, observava atentamente o cigarro se esvaindo,
sendo consumido pelas minhas sucções precisas, contínuas. Ali chorava todas as
lágrimas que não conseguia derramar.
- Então além de parar de fazer a barba, agora você fuma
também, Sr. Paul?
Estava muito concentrado na fumaça que expirava, e demorou
um pouco até que meu cérebro me avisasse que aquela voz era a de Marrie. Assim
que percebi o que estava acontecendo, saltei-me em pé e tossia a fumaça a qual
me engasguei.
- Como... você...
- Eu o segui, bonitão. Sei que não devia, mas eu o segui. –
os olhos de Marrie estavam cheios de lágrimas e sua voz engasgada. – Mas você
me seguiu primeiro. Você foi até mim na cafeteria. E se você foi até mim, é
porque ainda há esperanças.
Olhei para as pernas de Marrie e vi que estavam imundas de
terra. Seus pés estavam descalços, e Marrie segurava os sapatos em suas mãos.
Em seguida, olhei ao redor e vi que não encontrava nenhum veículo por perto.
- Você me seguiu a pé? – perguntei, espantado.
- Eu não tenho carro, Sr. Paul, nem um cavalo. Mas não se
incomode comigo, bonitão. Eu só queria ver você. – Marrie chorava muito. – Eu reconheci
seus olhos de longe, Paul, quando vi você naquela carroça sabia que você estava
lá por mim.
- Bem, você se enganou, eu fui até a cidade porque...
- Basta, Paul! – Marrie fez um sinal de pare com as duas
mãos. – Basta! Eu estou aqui porque esta é a sua última chance de poder ter um
futuro comigo...
- Lógico que é a última chance, Marrie. – ri cinicamente. –
Você está noiva, não é mesmo? Então se o babaca aqui não te aceitar de volta,
você se casa com o babaca da cidade. Quem é ele, hein? O filho do Sr. Brian? Há
há há.
- Você está equivocado, Sr. Paul. Em todos os sentidos.
- Ah, é, Sra. Marrie? Então explique-se melhor, porque para mim,
este anel em seu dedo é um anel de noivado.
As lágrimas não paravam de escorrer pelos olhos de Marrie.
- Sim, Sr. Paul, este anel em meu dedo é um anel de noivado.
Mas não estou noiva do filho de Sr. Brian, ele nunca teve filhos. Estou noiva
do médico que entrou para substituir o seu cargo, Sr. Paul. E não vim aqui para
tentar ser aceita por você de volta, eu vim aqui para saber se você ainda me
ama. Porque se você me amar, quem irá aceita-lo de volta, com ou sem essa merda
de direito de exercer Medicina, sou eu.
Não disse palavra alguma, apenas deixei meus olhos também
encherem-se de lágrimas. Meu coração batia doído. Marrie me encarava, esperando
uma resposta.
- O problema é este anel, Paul? –dizia Marrie, trêmula,
enquanto o arrancava do dedo com brutalidade e o jogava no meio do campo. –
Pronto, não tem mais nenhum anel de noivado aqui.
E para a minha surpresa, ali, em frente à fazenda onde estava
morando, Marrie também jogou os seus sapatos, seu vestido, sutiã e calcinha no
meio do campo.
- Pronto, Paul, - os olhos de Marrie já estavam esgotados e
vermelhos. – pronto. Agora não existe mais nada em mim que o meu coração. E a
minha tatuagem. Eu só quero uma resposta de você. Diz para mim se é para eu
espera-lo, se ainda posso ter esperança de que a gente vai vencer tudo isso
junto.
- Marrie, se vista! Os empregados lhe verão!
- FODA-SE, PAUL! FODA-SE OS EMPREGADOS! FODA-SE O DAVID!
FODA-SE “ELE” E TODA AQUELA PORRA DE CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA! FODA-SE!
FODA-SE O MEU NOIVADO E OS SEUS PAIS, ESSA SUA BARBA NOJENTA E ESSE SEU BAFO DE
CIGARRO!!! SÓ ME DIGA SE É PARA EU IR EMBORA PENSANDO EM VOCÊ, OU SE É PARA EU
IR EMBORA ESQUECENDO VOCÊ! ME RESPONDE AGORA, PAUL! AGORA!
- Marrie...
- Eu nunca pedi para você matar ninguém, Paul... – Marrie tampava
a boca para tentar segurar o choro. – eu nunca pedi para você fazer aquilo...
Por quê você fez aquilo, Paul?? Eu nunca pedi para ser salva, ai meu Deus do
céu, Paul, eu só pedi um xampu para você. Desde o dia em que te conheci, eu só
pedi um xampu para você... – Marrie caiu aos prantos, de joelhos, na grama da
fazenda.
- Marrie, eu quero que você vá embora daqui. Eu fui bem claro
na carta que lhe mandei. Seja feliz em seu casamento.
Marrie ergueu a cabeça, e em meio àqueles belíssimos ruivos
cabelos, eu a ouvi apunhalar meu coração:
- Sim, Paul, eu vou ser muito feliz em meu casamento. Porque
eu não sou uma covarde e hipócrita como você. Eu lutei até o fim pelo o que o
meu coração me pediu. Eu não tive medo, não tive honra, muito menos dignidade.
Apenas fui o que minha integridade sempre transpareceu. Você, Paul, pelo
contrário, nunca vai conseguir ser feliz. Porque você nunca se aceitou, nunca
se conheceu, e nunca procurou nada por isso. Foi muito mais fácil se esconder
atrás de um cigarro, de uma sala de cirurgia, de uma fazenda como esta. Eu me
prostituí à vida inteira, já apanhei, tenho minhas cicatrizes, perdi a chance
de ser mãe e fui humilhada de todas as maneiras possíveis. Mas eu conheci o seu
amor e vi que nada daquilo tinha importância, porque eu sabia o que realmente
valia a pena. Para mim o que realmente vale a pena é chegar em casa e ter
alguém para se dividir o dia. Só isso conta no final. Eu espero sinceramente
que você perca esse direito de exercer Medicina, e passe a exercer o controle
da sua vida sozinho.
Todos os empregados nos observavam. Todos pareciam muito
assustados com toda a situação, e principalmente com todas aquelas cicatrizes
de Marrie. Eu olhava para eles envergonhado, meio que pedindo uma ajuda para
que alguém me dissesse o que eu deveria fazer naquele momento.
Marrie, ainda nua, se aproximou de mim com dificuldade, e vi
que seus pés estavam machucados. Achei que fosse ganhar um último beijo, como
forma de despedida, mas o que recebi foi um tapa na cara. Um belo e forte tapa
na cara.
- Isto é por todas as vezes que você me abandonou. – Marrie desferiu
outro tapa em mim, com mais força ainda. – E isto foi por não ter me defendido
quando David me atacou. – Mais e mais tapas iam surgindo, cada vez mais forte e
mais rápidos. – E isto foi por ter me tirado do seu apartamento, e por ter me
feito a mulher mais feliz do mundo, só para me deixar de novo depois. E isto, -
agora Marrie me dera chute, bem entre minhas pernas. – foi pelo ‘passar bem’
que me escreveu na carta. Passar bem, você, Sr. Paul! Passar bem você!
Agora quem estava caído no chão era eu, sentindo dor, e mais
ainda remorso por toda dor que causei na vida daquela pequena mulher. Sabia que
não deveria ter agido daquela maneira, sabia que aquela era a hora de abrir meu
coração e me deixar viver o grande amor que sentia por Marrie. Mas estava
bloqueado, ainda estava sendo guiado pelo meu ego, pelos bons costumes, e pela
culpa que colocara em Marrie pela morte do “ele”. Ainda era um covarde.
Marrie procurou suas roupas no meio da grama, e as vestiu
sem pensar em se arrumar ou se sentir um pouco mais limpa. Sem pegar os
sapatos, ou o seu anel, foi embora da fazenda da mesma maneira em que havia chegado:
a pé.
Quando consegui me sentar, caí aos prantos. Chorei alto,
gritei, esperneei, e tentei correr atrás de Marrie, em vão. Era tarde demais.
Assim que cheguei de volta à fazenda, fumei um maço de
cigarro. Um atrás do outro. Sem parar. E a cada vez que me lembrava de Marrie
me chamando de covarde, era mais um motivo para tragar mais uma vez. Até que
fui surpreendido por um dos empregados:
- Sr. Paul, telefone para o senhor.
Era meu advogado. Os dois julgamentos estavam marcados.
Enfim chegara a hora do grande dia.
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