(Leia o nono capítulo em: http://negaescreve.blogspot.com.br/2013/12/paul-e-marrie-cap-9-meu-primeiro-dia.html )
- Entre, bonitão. – convidou-me Marrie, sorrindo mais do que
o costume. Percebi que ela já havia ingerido uma quantia considerável de
álcool.
Havia uma garrafa de uísque pela metade sobre o balcão e
tocava Frank Sinatra dentro da cafeteria. Por um tempo não consegui desvendar
de onde vinha aquela música, mas me bastou um segundo observando atentamente
para que visse nas paredes algumas caixas de som, fixadas em locais
estratégicos. Não aparentavam ser novas, o que me fez pensar em quantos anos
Sr. Brian as deixara desligadas, e em como ele fazia bem em liga-las para
Marrie. Marrie merecia aquela música.
- Estávamos aqui, fazendo a faxina de sempre, quando sugeri
que Sr. Brian reativasse a música deste local... – disse Marrie, interrompendo
meus pensamentos. Como se estivesse dentro deles e pudesse responder os meus questionamentos internos.
- E eu disse para Marrie que reativaria o som daqui desde
que ela me concedesse uma dança. – terminou Sr. Brian, aparentemente bem
humorado, e notadamente não por conta do uísque. Marrie também tocara o seu
coração.
- Sr. Brian, permita-me apresentar... – disse, esticando o
braço para um aperto de mãos.
- Eu sei muito bem quem o senhor é. Marrie me contou que suas
mãos curam as pessoas, e que é por isso que o hospital inteiro o chama de “Doutor-
Anjo”. Quem dera o tempo pudesse ter permitido que o senhor cuidasse da minha
falecida esposa...
Na hora, tive vontade de lhe explicar que era apenas um mero
cirurgião, e que não poderia tê-lo ajudado a curar a doença de sua falecida esposa, que
eu não era um anjo, e muito menos fazia milagres. Mas sabia que ali não era o
momento de dizer verdades. Aquele homem só precisava de um conforto, que fora o
Marrie fizera desde o dia em que chegara à cafeteria. Fitei-o por um segundo e
depois cumprimentamo-nos com um forte aperto de mãos. Sr. Brian continuou:
- Participe desde momento conosco, Doutor. Junte-se a nossa
dança.
Marrie buscou um copo com gelo para mim e serviu-me uísque
puro, um pouco desajeitada. Ainda estava sorrindo para mim.
E a segunda surpresa da noite, após descobrir as caixas de
som na cafeteria, foi saber que Sr. Brian colecionava garrafas de uísque, e as
deixava guardadas no depósito da cafeteria. Não me recordo o quanto nós bebemos
naquela noite, nem como criei coragem para colocar os óculos escuros que Sr.
Brian me emprestara. E nem como comecei a dançar com Marrie.
Gargalhávamos, os três, ao ouvir as antigas histórias de Sr.
Brian, da época em que ele ainda era sociável e enxergava alguma alegria em sua
vida. Também contei um pouco de minha vida na faculdade, e sobre algumas
situações engraçadas que já vivera no hospital. Marrie apenas ouvia nós dois.
Eu sabia que infelizmente ela não tinha nada de bom a contar.
Já estava completamente embriagado quando Sr. Brian se
despediu de nós dois e foi embora a pé para sua casa. Era a minha deixa para ir
também.
Contudo, assim que Sr. Marrie saiu, Marrie trancou a porta
da cafeteria e virou-se para mim:
- Agora quero ouvir as suas desculpas, bonitão.
E sem pensar duas vezes, agarrei-a pelos cabelos e comecei a
beijá-la desesperadamente. Marrie correspondia o beijo com amor, e cravava os
dedos meus ombros, suspirando enquanto eu passeava a língua por sua boca.
- Eu não sei o que está acontecendo comigo, Marrie.
Perdoa-me por ter deixado você daquele jeito na banheira, por tê-la expulsado
de meu apartamento... Na hora parecia o certo a ser feito, mas, de repente,
assim que saí dali... me senti tão, tão...
- “Tão” o quê, bonitão? Não vou completar sua frase. Quero
ouvir isso de você.
- Tão sozinho, Marrie. Era como se nenhuma pessoa neste
mundo fosse capaz de suprir a falta que você iria me fazer. Era como se o certo
se tornasse algo insuportável em minha vida, pois preciso de você. Você sabe
que eu não posso me apaixonar por você, não sabe?
- Sei, Sr. Paul. E é por isso que eu aceito as suas
desculpas. Porque eu também não deveria estar apaixonada por você. Você não me
permitiu isso. Mas também estou infringindo as regras, e não pretendo mudar a
minha opinião.
Seus olhos fritavam à espera de uma resposta, de um “eu te
amo”, ou de qualquer gesto que demonstrasse que ali dentro de mim eu também
iria desrespeitar as regras: que eu me permitiria amar uma prostituta.
Não dei a resposta que Marrie esperava. Apenas continuei a
lhe beijar, até o momento em que meu corpo exigia que saíssemos dali. Que
fôssemos para outro lugar.
- Durma comigo hoje, Marrie. Durma comigo em meu
apartamento.
Marrie entreabriu os lábios e olhou-me com receio. Sabia que
estava insegura a voltar para lá, para o lugar onde eu dilacerara pela primeira
vez o seu coração.
Mas rapidamente aquela pequena mulher mudou sua expressão, e
fez que sim com a cabeça e foi até o quartinho onde estava morando buscar uma
troca de roupas para levar consigo.
Enquanto Marrie arrumava a mala, fiquei pensando sobre a
loucura que estava prestes a fazer de novo, e se Mr. Richard me cobraria algo a
mais pelo o que faríamos naquela noite. Já estava muito alterado pela quantia
de uísque que tomara, e não dei vazão para aqueles pensamentos bobos. Só queria
beijar e dormir abraçado a noite inteira com aquela pequena mulher, sentindo
seu cheiro, admirando seus cabelos...
Já se passavam das três da manhã quando nos dirigíamos para
o meu apartamento. Conversávamos muito alto, cantarolando alguma melodia que já
não me lembro mais, e ainda estávamos usando os óculos de sol de Sr. Brian.
E por ainda ser noite, as lentes escuras me atrapalharam a
enxergar que quem estava na porta do prédio, bloqueando a nossa entrada, era
David.
Eu me esquecera de nosso encontro.
- Agora você passou dos limites, Paul! Você tem ideia de
quantas horas estou aqui esperando você chegar? – berrava David.
Imediatamente soltei a mão de Marrie.
- David, eu...
- Cala essa boca, Paul! Está vendo por que não posso me
divorciar? Você não é uma pessoa confiável, aliás, nem sei se posso dizer se
você é um verdadeiro homossexual! Porque a primeira vadiazinha que aparece você
já fica assim, andando de mãos dadas.
- Você não se divorcia porque o senhor é um covarde. O fato
de eu estar ou não de mãos dadas com o Sr. Paul não interfere em nada. –
respondeu, Marrie, calmamente, encarando David.
- Querida, desculpe-me, mas eu não converso com um ser que
vende o seu próprio corpo, que por sinal não é lá grande coisa, para ganhar a
vida.
- Mais uma prova de que o senhor não passa de um homem
covarde. Você não conversa comigo porque você ainda não tem coragem de encarar
a verdade. Eu tenho, senhor.
- Mas o que é isso?! Vou ficar mesmo ouvindo essa série de
asneiras desta piranha, Paul? – David tremia os lábios de raiva enquanto
gritava.
- Marrie, não fale assim com David, ele está muito nervoso,
e com razão. Eu me esqueci que nós tínhamos um encontro hoje. Acho melhor você
voltar para a cafeteria... – não consegui olhar para seus olhos enquanto
pronunciava a frase.
- Olha, Sr. Paul, preste muita atenção no que vou lhe dizer:
eu não preciso do seu amor. Não preciso da sua pena, da sua compaixão, nem da
sua reciprocidade. Eu me viro muito bem sozinha, sempre foi assim! Passei anos
e anos de minha vida sendo espancada, torturada e estuprada, sempre esperando a
compaixão dele, o que nunca aconteceu. O homem que comprou quando eu tinha oito
anos me engravidou duas vezes, e fui obrigada a abortar em ambas. Perdi duas
vezes a chance de ser mãe. Porque por incrível que pareça, “ele” foi o meu
primeiro amor. O meu pai fala que não era amor, e sim Síndrome do Estocolmo,
mas eu sei que não foi! Ele foi o primeiro amor de minha vida porque foi a
única pessoa que convivi durante anos. Só ouvia a voz dele, só enxergava o
rosto dele, e mesmo assim ele me fez abortar. E quando eu achava que nada mais poderia
piorar em minha vida, “ele” trouxe um médico para acabar de vez com a minha
chance de ter uma família: fiz uma cirurgia que retirou meu útero. Ele levou
meu útero, minha integridade, minha infância, minha pele, mas uma coisa ele
jamais conseguiu levar: o meu coração! Porque este, Sr. Paul, este continua bem
aqui – Marrie batia com força em seu peito. -, batendo sem parar, mostrando que
eu não preciso do amor de ninguém para continuar viva. Para seguir em frente.
Então não me venha com essas promessas falsas, com esse beijos carinhosos, como
os que o senhor me deu na cafeteria! Não preciso disso! E não presto mais
serviços para o senhor para ter o dever de lhe obedecer. Por isso, repito: acorde,
Sr. Paul! Acorde, porque você está diante de um covarde, que nunca vai deixar
um fio de cabelo de lado para ficar só com você. Não existe data marcada para
se terminar aquilo que não tem sentimento mais. Quando a gente realmente quer,
só existe o agora. E você sabe disso. – Marrie chorava e tremia as mãos
enquanto gritava no meio da rua. – E você sabe que eu largaria qualquer coisa
para estar ao seu lado, bonitão. Se eu pudesse, e se isso fosse trazer você
para mim, eu reabriria cada uma de minhas cicatrizes, se isso fosse fazer você
gostar de mim. Pena que você não queira enxergar. Pena que você só queira ver a
prostituta que está diante de ti, e não mais a Marrie. E tirando qualquer dúvida
sua, Dr. David – Marrie virou o rosto em sua direção. -, não tenho incerteza
alguma que o Sr. Paul goste de pessoas do mesmo sexo que ele. Porque eu fui o
mais próximo de um homem de verdade que ele já teve na vida. E confesso mais:
ele gostou, e muito.
Marrie nos deu as costas, esquecendo sua sacola de roupas no
chão. Saiu correndo e foi questão de segundos para que eu a perdesse de vista.
E a colocasse ainda mais dentro de meu coração.