Acordei e vi no relógio que dormira por mais de seis horas. Ainda
estava exausto, com dor de cabeça, mas me sentia completamente bem para dar a
minha notícia a Marrie: estava livre de David. Liberto de qualquer algema e
pronto para amar aquela pequena mulher.
Quando estava próximo à cafeteria de Sr. Brian, vi que
Marrie se dirigia ao hospital, com um suporte pendurado em seu pescoço, uma
grande bandeja de madeira, em que levava rosquinhas para os funcionários.
Vi também que deixara a porta da cafeteria aberta, dando a
entender que logo estaria por ali de volta. Resolvi então adentrar e esperar
pela sua chegada.
As luzes estavam apagadas, as cortinas todas fechadas, e
ainda era possível sentir um leve cheiro de álcool pairando pelo ambiente.
Sentei-me no balcão e esperei por alguns minutos até que Marrie chegasse.
Contudo, quando vi de relance na porta sua aproximação,
percebi que não estava sozinha. David vinha a seguindo sem dizer uma palavra.
Marrie ainda não notara a sua presença.
Por medo, e também por curiosidade para saber o que David
iria dizer para Marrie, escondi-me atrás do balcão e infelizmente vi suceder a
cena mais cruel de toda a minha vida.
Quando Marrie passou pela porta e abaixou o pescoço para
colocar o suporte em cima de uma mesa, David, com arrogância e brutalidade,
entrou na cafeteria, bateu a porta e trancou-a atrás de si.
- Dr. David, o que o senhor está fazendo aqui? – a voz de
Marrie parecia assustada, mas apenas porque se surpreendera com a visita
inesperada. Ela não fazia ideia do que estava prestes a acontecer.
- Você já deve estar sabendo, “Objeto”, – David sorria
maleficamente enquanto se aproximava de Marrie. – que o Dr. Paul veio até minha
sala mais cedo dizer que não se interessa mais em manter o nosso relacionamento.
Que agora ele quer ter uma vida a dois com você.
- Eu não sabia, Dr. Paul.
E sem mais, nem menos, David desferiu um murro com toda
força na cara de Marrie, que fez com que ela caísse para trás e batesse a
cabeça em uma das mesas antes de cair no chão. Não sei como ela não desmaiara.
- “Objeto”, piranha, puta enferma, a última coisa que eu
quero ter o desprazer hoje é de ouvir a sua voz. Eu não vim aqui para discutir
com você, porque com o seu nível não cabe qualquer diálogo. Eu vim aqui porque
quero sentir com o meu próprio “pinto” o que você fez que Paul gostou tanto.
Arregalei os olhos e prendi fundo a respiração de desespero:
David estava ali para estuprar Marrie. Tentei me levantar do esconderijo e falar
qualquer coisa, na tentativa de interromper aquela covardia, mas minhas pernas
tremiam tanto que eu não conseguia sair do lugar.
- Anda, puta, levanta que eu vou comer você agora.
Eu podia ver a cabeça de Marrie de onde eu estava, e a poça
de sangue que estava começando a se formar próxima a ela. Marrie corria perigo.
- EU MANDEI VOCÊ LEVANTAR! – berrou David, enquanto chutava
e pisava em Marrie.
- Você não percebe, Doutor? Quem se colocou nesta situação
foi o próprio senhor. – balbuciava Marrie, com muita dificuldade, enquanto se
levantava. – Eu não vim para esta cafeteria porque me ofereceram um emprego! Eu
vim para cá porque o senhor JAMAIS SE DISPÔS A SE DIVORCIAR! Eu estou aqui
PORQUE O SENHOR MANDOU PAUL ARRUMAR UMA NAMORADA! Não adianta você me culpar
pelo que está acontecendo, porque se desde o começo você tivesse se divorciado,
ouvido Paul, dado valor em seus interesses, em suas vontades, EU JAMAIS ESTARIA
AQUI! Porque como o próprio senhor falou, EU SOU UMA PUTA! NINGUÉM ME CONHECE
POR AMOR A PRIMEIRA VISTA!
David deu outro murro em Marrie, mas desta vez ela não caiu
no chão. Continuou firme, de pé, com os olhos fixos em David, sem revidar o
gesto. David então, a puxou pelos cabelos, e enquanto Marrie tentava se
desvencilhar dos golpes, em um único movimento bruto, David rasgou o seu
vestido no meio.
- Hmm... que milagre! A puta usa calcinha.
- Socorro! – Marrie começou a gritar. – Socorro.
Mas era impossível fugir. David era muito maior que ela, e
estava na posse da chave da porta. E a cafeteria, como estava toda escura, era
apenas um lugar fechado para qualquer um que passasse na rua.
David arrancou sua calcinha e os dois começaram a lutar
ferozmente. Não sabia como Marrie ainda tinha forças para lutar contra um homem
daquele tamanho, e minha mente começou a pensar em todas as suas cicatrizes, em
todos os anos que passara ao lado do “ele”, e na ausência de útero em seu
corpo.
Quando me dei conta, David estava pressionando Marrie no
balcão, porém, como estava muito escondido, ninguém notou a minha presença.
E quando Marrie conseguiu livrar uma de suas mãos, em um rápido
gesto pegou uma das garrafas vazias de uísque que estavam na parte de trás do
balcão e acertou em cheio na cabeça de David, fazendo com que ele tonteasse.
- Olhe bem para mim, Dr. David, e preste muita atenção no
que vou lhe dizer: você pode tocar o meu corpo, mas jamais tocará a minha alma.
Você pode comer este corpo, estupra-lo, ofendê-lo, queimá-lo, cortá-lo, assim
como inúmeras vezes já fizeram comigo. Você pode me xingar, me bater, me
espancar, me humilhar, acabar com cada pedacinho que você enxerga. Mas uma coisa
eu lhe digo senhor, a minha alma você nunca vai conseguir tocar. A minha alma,
que eu sei muito bem que é ela que o senhor tanto deseja, esta será impossível
de flagelar. E não se engane! Tente quantas vezes quiser... não há mais nada
aqui – Marrie colocou uma mão sobre seu coração. – e aqui – e com a outra tocou
sua cabeça sangrando. – que possa ser tirado. Não sobrou nada para o senhor.
David cambaleava, apoiando-se nas cadeiras e gemendo de dor.
Marrie em momento algum fizera qualquer barulho indicando que estivesse
sofrendo, e meus olhos se desfizeram em lágrimas ao entender que ela não
mentira ao dizer que não havia mais nada dentro dela, pois tudo lhe fora
tirado.
- E tem mais, Doutor: eu posso não ter mais nada para ser
tirado, mas o senhor tem. E se você encostar mais um dedo em mim, mais uma
aproximação, eu vou tirar tudo o que você ainda tem na sua alma. Porque posso
estar sozinha agora, vulnerável, cheia de cicatrizes. Só não se esqueça que
assim que você sair por esta porta, se você tiver tocado em meu corpo, que o
senhor será um homem que comeu a puta predileta do cafetão e não pagou. E ele
acertará as contas você, senhor, eu lhe garanto! Mr. Richard nunca deixou uma
dívida passar em branco. – Marrie deitou-se com muita dificuldade em uma das
mesas, apoiou-se nos cotovelos e abriu as pernas em posição de fornicação. – A decisão
é sua.
Não podia ver a expressão de David direito, pois ele estava
de costas para mim. Só via que ele ainda cambaleava, e provavelmente observava
perplexo a cena que estava a sua frente. Não demorou muitos segundos para que
ele tirasse a chave do bolso da calça branca e abrisse a porta da cafeteria e
fosse embora rapidamente.
O local estava inteiro pelos ares: cadeiras e mesas
derrubadas, cacos de vidro e sangue por todos os lados, as roupas de Marrie
rasgadas no chão. E o cheiro de uísque por todos os cantos.
Marrie começou a chorar alto e só então começou a tremer
suas pernas. Agora, também cambaleando, agachou-se e pegou seu vestido rasgado,
e colocou-se nele novamente. Abraçou-se com as mãos, e sem calcinha, saiu a
passos lerdos para fora da cafeteria em direção ao hospital. Ela precisaria de
cuidados médicos.
Aproveitei a sua saída e fui embora da cafeteria, correndo
até meu carro, estacionado próximo ao meu apartamento, e segui às pressas até o
apartamento que David tinha e que usávamos para nos encontrar.
Lá tinha porteiro, mas como já era conhecido, subi sem
precisar me apresentar. Imaginava que David estaria ali, e não errei em minha
adivinhação.
Quando cheguei, abri a porta e o ouvi conversando ao
telefone:
- Celina, você anotou o endereço então? Preciso de você aqui
o quanto antes, minha cabeça está sangrando e os cacos ainda estão presos nela.
Obrigada!
Fitei-o por alguns segundos, e antes que eu dissesse
qualquer coisa, David se pronunciou:
- Paul, você não pode mais ficar com aquela mulher. Ela é
maluca! Eu fui até a cafeteria de Sr. Brian, disposto a ter uma conversa de
adulto com ela, e implorar para que ela fosse embora, pois eu amo você e não
vou conseguir ficar longe, e te ver todos os dias no hospital. Mas assim que
cheguei lá, ela me disse que só o deixaria se eu lhe desse uma enorme quantia
em dinheiro, e obviamente eu neguei, pois jamais faria uma coisa assim. Aí,
ela...
- SEU PORCO! COVARDE! – eu o agarrara pelo colarinho da
camisa. – EU ESTAVA LÁ! EU VI TUDO O QUE VOCÊ FEZ! – não conseguia conter as
lágrimas enquanto eu berrava. – EU VI O QUE VOCÊ FEZ COM A MARRIE! COVARDE!
- O quê?! Você estava lá?! – exclamou David, perplexo.
- Sim! EU ESTAVA LÁ! Eu queria falar com Marrie, e quando vi
que você estava seguindo ela, resolvi me esconder atrás do balcão, pois queria
ouvir o que você tinha para dizer a ela. Só me fez o quanto você é um COVARDE!
David riu ironicamente.
- Olha, Paul, você vai me desculpar, mas se você viu tudo
como disse, se esteve presente em todo o acontecimento e não fez nada, você é
muito mais covarde que eu.
Assim que ouvi o que David dissera, larguei o colarinho de
sua camisa e o deixei em pé. Senti meu coração bater mais devagar.
- Olha só, meu querido, - David continuava rindo. – você também
é um grande covarde. Conviva com isso a partir de agora: o homem que você mais
abomina é melhor que você. Quem sabe a sua Marrie uma dia o perdoe, hein? HÁ HÁ
HÁ. Se é que você vai ter coragem de dizer a verdade para ela: que me viu fazer
o que fiz e ficou quieto igual uma pedra.
Saí do apartamento de David desolado, pois ele tinha razão:
eu era mais covarde do que ele.