quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

PAUL E MARRIE - CAP. 10: MEU SEGUNDO DIA SEM MARRIE


                                                   (FOTO: http://www.flickr.com/photos/ocapela/6196450360/sizes/z/in/photostream/)


- Entre, bonitão. – convidou-me Marrie, sorrindo mais do que o costume. Percebi que ela já havia ingerido uma quantia considerável de álcool.

Havia uma garrafa de uísque pela metade sobre o balcão e tocava Frank Sinatra dentro da cafeteria. Por um tempo não consegui desvendar de onde vinha aquela música, mas me bastou um segundo observando atentamente para que visse nas paredes algumas caixas de som, fixadas em locais estratégicos. Não aparentavam ser novas, o que me fez pensar em quantos anos Sr. Brian as deixara desligadas, e em como ele fazia bem em liga-las para Marrie. Marrie merecia aquela música.

- Estávamos aqui, fazendo a faxina de sempre, quando sugeri que Sr. Brian reativasse a música deste local... – disse Marrie, interrompendo meus pensamentos. Como se estivesse dentro deles e pudesse responder os meus questionamentos internos.

- E eu disse para Marrie que reativaria o som daqui desde que ela me concedesse uma dança. – terminou Sr. Brian, aparentemente bem humorado, e notadamente não por conta do uísque. Marrie também tocara o seu coração.

- Sr. Brian, permita-me apresentar... – disse, esticando o braço para um aperto de mãos.

- Eu sei muito bem quem o senhor é. Marrie me contou que suas mãos curam as pessoas, e que é por isso que o hospital inteiro o chama de “Doutor- Anjo”. Quem dera o tempo pudesse ter permitido que o senhor cuidasse da minha falecida esposa...

Na hora, tive vontade de lhe explicar que era apenas um mero cirurgião, e que não poderia tê-lo ajudado a curar a doença de sua falecida esposa, que eu não era um anjo, e muito menos fazia milagres. Mas sabia que ali não era o momento de dizer verdades. Aquele homem só precisava de um conforto, que fora o Marrie fizera desde o dia em que chegara à cafeteria. Fitei-o por um segundo e depois cumprimentamo-nos com um forte aperto de mãos. Sr. Brian continuou:

- Participe desde momento conosco, Doutor. Junte-se a nossa dança.

Marrie buscou um copo com gelo para mim e serviu-me uísque puro, um pouco desajeitada. Ainda estava sorrindo para mim.

E a segunda surpresa da noite, após descobrir as caixas de som na cafeteria, foi saber que Sr. Brian colecionava garrafas de uísque, e as deixava guardadas no depósito da cafeteria. Não me recordo o quanto nós bebemos naquela noite, nem como criei coragem para colocar os óculos escuros que Sr. Brian me emprestara. E nem como comecei a dançar com Marrie.

Gargalhávamos, os três, ao ouvir as antigas histórias de Sr. Brian, da época em que ele ainda era sociável e enxergava alguma alegria em sua vida. Também contei um pouco de minha vida na faculdade, e sobre algumas situações engraçadas que já vivera no hospital. Marrie apenas ouvia nós dois. Eu sabia que infelizmente ela não tinha nada de bom a contar.

Já estava completamente embriagado quando Sr. Brian se despediu de nós dois e foi embora a pé para sua casa. Era a minha deixa para ir também.

Contudo, assim que Sr. Marrie saiu, Marrie trancou a porta da cafeteria e virou-se para mim:

- Agora quero ouvir as suas desculpas, bonitão.

E sem pensar duas vezes, agarrei-a pelos cabelos e comecei a beijá-la desesperadamente. Marrie correspondia o beijo com amor, e cravava os dedos meus ombros, suspirando enquanto eu passeava a língua por sua boca.

- Eu não sei o que está acontecendo comigo, Marrie. Perdoa-me por ter deixado você daquele jeito na banheira, por tê-la expulsado de meu apartamento... Na hora parecia o certo a ser feito, mas, de repente, assim que saí dali... me senti tão, tão...

- “Tão” o quê, bonitão? Não vou completar sua frase. Quero ouvir isso de você.

- Tão sozinho, Marrie. Era como se nenhuma pessoa neste mundo fosse capaz de suprir a falta que você iria me fazer. Era como se o certo se tornasse algo insuportável em minha vida, pois preciso de você. Você sabe que eu não posso me apaixonar por você, não sabe?

- Sei, Sr. Paul. E é por isso que eu aceito as suas desculpas. Porque eu também não deveria estar apaixonada por você. Você não me permitiu isso. Mas também estou infringindo as regras, e não pretendo mudar a minha opinião.

Seus olhos fritavam à espera de uma resposta, de um “eu te amo”, ou de qualquer gesto que demonstrasse que ali dentro de mim eu também iria desrespeitar as regras: que eu me permitiria amar uma prostituta.

Não dei a resposta que Marrie esperava. Apenas continuei a lhe beijar, até o momento em que meu corpo exigia que saíssemos dali. Que fôssemos para outro lugar.

- Durma comigo hoje, Marrie. Durma comigo em meu apartamento.

Marrie entreabriu os lábios e olhou-me com receio. Sabia que estava insegura a voltar para lá, para o lugar onde eu dilacerara pela primeira vez o seu coração.

Mas rapidamente aquela pequena mulher mudou sua expressão, e fez que sim com a cabeça e foi até o quartinho onde estava morando buscar uma troca de roupas para levar consigo.

Enquanto Marrie arrumava a mala, fiquei pensando sobre a loucura que estava prestes a fazer de novo, e se Mr. Richard me cobraria algo a mais pelo o que faríamos naquela noite. Já estava muito alterado pela quantia de uísque que tomara, e não dei vazão para aqueles pensamentos bobos. Só queria beijar e dormir abraçado a noite inteira com aquela pequena mulher, sentindo seu cheiro, admirando seus cabelos...

Já se passavam das três da manhã quando nos dirigíamos para o meu apartamento. Conversávamos muito alto, cantarolando alguma melodia que já não me lembro mais, e ainda estávamos usando os óculos de sol de Sr. Brian.

E por ainda ser noite, as lentes escuras me atrapalharam a enxergar que quem estava na porta do prédio, bloqueando a nossa entrada, era David.

Eu me esquecera de nosso encontro.

- Agora você passou dos limites, Paul! Você tem ideia de quantas horas estou aqui esperando você chegar? – berrava David.

Imediatamente soltei a mão de Marrie.

- David, eu...

- Cala essa boca, Paul! Está vendo por que não posso me divorciar? Você não é uma pessoa confiável, aliás, nem sei se posso dizer se você é um verdadeiro homossexual! Porque a primeira vadiazinha que aparece você já fica assim, andando de mãos dadas.

- Você não se divorcia porque o senhor é um covarde. O fato de eu estar ou não de mãos dadas com o Sr. Paul não interfere em nada. – respondeu, Marrie, calmamente, encarando David.

- Querida, desculpe-me, mas eu não converso com um ser que vende o seu próprio corpo, que por sinal não é lá grande coisa, para ganhar a vida.

- Mais uma prova de que o senhor não passa de um homem covarde. Você não conversa comigo porque você ainda não tem coragem de encarar a verdade. Eu tenho, senhor.

- Mas o que é isso?! Vou ficar mesmo ouvindo essa série de asneiras desta piranha, Paul? – David tremia os lábios de raiva enquanto gritava.

- Marrie, não fale assim com David, ele está muito nervoso, e com razão. Eu me esqueci que nós tínhamos um encontro hoje. Acho melhor você voltar para a cafeteria... – não consegui olhar para seus olhos enquanto pronunciava a frase.

- Olha, Sr. Paul, preste muita atenção no que vou lhe dizer: eu não preciso do seu amor. Não preciso da sua pena, da sua compaixão, nem da sua reciprocidade. Eu me viro muito bem sozinha, sempre foi assim! Passei anos e anos de minha vida sendo espancada, torturada e estuprada, sempre esperando a compaixão dele, o que nunca aconteceu. O homem que comprou quando eu tinha oito anos me engravidou duas vezes, e fui obrigada a abortar em ambas. Perdi duas vezes a chance de ser mãe. Porque por incrível que pareça, “ele” foi o meu primeiro amor. O meu pai fala que não era amor, e sim Síndrome do Estocolmo, mas eu sei que não foi! Ele foi o primeiro amor de minha vida porque foi a única pessoa que convivi durante anos. Só ouvia a voz dele, só enxergava o rosto dele, e mesmo assim ele me fez abortar. E quando eu achava que nada mais poderia piorar em minha vida, “ele” trouxe um médico para acabar de vez com a minha chance de ter uma família: fiz uma cirurgia que retirou meu útero. Ele levou meu útero, minha integridade, minha infância, minha pele, mas uma coisa ele jamais conseguiu levar: o meu coração! Porque este, Sr. Paul, este continua bem aqui – Marrie batia com força em seu peito. -, batendo sem parar, mostrando que eu não preciso do amor de ninguém para continuar viva. Para seguir em frente. Então não me venha com essas promessas falsas, com esse beijos carinhosos, como os que o senhor me deu na cafeteria! Não preciso disso! E não presto mais serviços para o senhor para ter o dever de lhe obedecer. Por isso, repito: acorde, Sr. Paul! Acorde, porque você está diante de um covarde, que nunca vai deixar um fio de cabelo de lado para ficar só com você. Não existe data marcada para se terminar aquilo que não tem sentimento mais. Quando a gente realmente quer, só existe o agora. E você sabe disso. – Marrie chorava e tremia as mãos enquanto gritava no meio da rua. – E você sabe que eu largaria qualquer coisa para estar ao seu lado, bonitão. Se eu pudesse, e se isso fosse trazer você para mim, eu reabriria cada uma de minhas cicatrizes, se isso fosse fazer você gostar de mim. Pena que você não queira enxergar. Pena que você só queira ver a prostituta que está diante de ti, e não mais a Marrie. E tirando qualquer dúvida sua, Dr. David – Marrie virou o rosto em sua direção. -, não tenho incerteza alguma que o Sr. Paul goste de pessoas do mesmo sexo que ele. Porque eu fui o mais próximo de um homem de verdade que ele já teve na vida. E confesso mais: ele gostou, e muito.

Marrie nos deu as costas, esquecendo sua sacola de roupas no chão. Saiu correndo e foi questão de segundos para que eu a perdesse de vista. E a colocasse ainda mais dentro de meu coração.






quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

PAUL E MARRIE - CAP. 9: Meu primeiro dia sem Marrie


                                            (FOTO: http://www.flickr.com/photos/gazeronly/10170078264/sizes/z/in/photostream/)

Eu gostaria de dizer a você, meu caro leitor, que imediatamente após sair do apartamento, senti-me arrependido e voltei atrás em minha decisão. Mas infelizmente não foi assim que as coisas aconteceram.

Quando cheguei em casa, fui direto para o banheiro tomar banho. Sentia-me sujo, impregnado pela energias e cheiros que aquela pequena mulher deixara em mim. Esfregava a esponja em meu corpo com força, na tentativa de apagar tudo o que fizera naquela tarde.

Todavia, enquanto a água do chuveiro escorria pelos meus cabelos, atravessando-os, diluindo o xampu e me fazendo fechar os olhos, só conseguia pensar em Marrie.

Só conseguia pensar em Marrie e na brisa que entrara no banheiro, fazendo com que as lágrimas que estavam presas em seus olhos escorressem rapidamente pelo seu rosto. "Mas o que foi que eu fiz, Sr. Paul?" Era a pergunta que martelava meu cérebro. E punia meu coração.

E por incrível que pareça, mesmo com todos aqueles pensamentos me atordoando, fazendo me sentir tão culpado, e tão pouco "Doutor-Anjo", não tive nenhum pesadelo e nenhuma dificuldade para dormir naquela noite. Meus problemas começaram assim que despertei.

A chave de meu apartamento estaria à minha espera na cafeteria de Sr. Brian, assim como eu requisitara no dia anterior. E Marrie estaria de volta a sua vida no bordel de Mr. Richard. Seria como se nada tivesse acontecido, como se esses dias vividos fossem um doce e ilusório sonho do qual eu tivesse acabado de acordar. 

Minha cabeça estava muito confusa. A ideia de não ver mais o rosto de Marrie me deixara de mau humor. Enquanto seguia para a cafeteria, pensei que talvez, um dia, daqui a algum tempo, eu pudesse ir até o bordel de Mr. Richard visitar Marrie. Apenas para conversar e vê-la sorrir, daquele jeito que só ela sabia fazer. Afinal, poderíamos ser amigos.

"Então somos mais que amigos, bonitão."! Era como se minha própria mente respondesse-me o quão absurdo era eu usar a desculpa da amizade para alguém que jamais poderia ser minha amiga. Seríamos para sempre algo além disso.

Adentrei a cafeteria cabisbaixo, tornando minha surpresa ainda maior: Marrie estava ali, com outro vestido de flor, andando para lá e para cá com uma bandeja na mão, enquanto distribuía pães e cafés aos fregueses.

Cumprimentei-a a friamente com um aceno de cabeça, e esperei que viesse até o meu encontro para que ela me desse as devidas explicações. Mas antes que eu pudesse perguntar-lhe qualquer coisa, Marrie entregou-me um envelope escuro, enquanto dizia:

- Sr. Paul, conforme o combinado, aqui estão as chaves de seu apartamento, e assim como o senhor requisitou, não há mais nenhum pertence meu naquele recinto. Caso o senhor deseje devolução de parte de seu dinheiro, deverá tratar deste assunto diretamente com meu pai, Mr. Richard.

Aquilo me surpreendera. Não poderia dizer se Marrie havia decorado aquela frase na noite anterior, ou se simplesmente fluíra de forma espontânea naquele momento, mas Marrie o fizera com perfeição. Apunhalara-me com força, e agora já estava pegando de volta sua bandeja para voltar ao trabalho.

- E por fim, Sr. Paul, muito obrigada por estes dias. Foram os melhores de minha vida.

Sentira-me mais apunhalado ainda, pois sabia que assim que Marrie passasse por mim com aquela bandeja, não conversaríamos mais. Segurei, então, seu braço, para que não voltasse ao trabalho. Não antes de ouvir um pouco mais a sua voz:

- Pensei que você fosse voltar para a casa de Mr. Richard, Marrie. - era incapaz de chamar, em voz alta, de bordel o lar daquela pequena mulher.

- Não, Sr. Paul. Eu nunca tive uma vida de verdade, com trabalho, amigos, "mais que amigos" - Marrie encarara-me com seriedade -, e nem um lugar onde pudesse plantar as minhas flores. Não sei o que o senhor pensa a meu respeito, mas nunca trabalhei para meu pai por prazer. Eu só trabalhei ali por devoção.

Arregalei os olhos e fui tentar explicar que não era isso que eu estava tentando dizer, porém, Marrie não me deixara começar:

-E meu pai é um homem bom, Sr. Paul. Ele me ama muito. Assim que pedi para ficar, ele consentiu! E depois inventei para o Sr. Brian que não estava conseguindo pagar meu aluguel mais, e ele permitiu que eu morasse aqui na cafeteria, no quartinho dos fundos, desde que trabalhasse duas horas a mais por dia. Não se preocupe, Sr. Paul. Isso não tem mais nada a ver com o senhor.

Não conseguira controlar a risada de ironia. "E meu pai é um homem bom, Sr. Paul." O quão inocente poderia ser Marrie?

- Qual a graça, Sr. Paul? - indagou-me friamente Marrie.

- Você realmente acha que Mr. Richard ama você?

- E estou errada?

- Mas é claro que sim, Marrie! - exclamei, soltando o seu braço.

Marrie colocara a bandeja sobre o balcão, e sentara-se ao meu lado., virando o banco para ficar frente a frente comigo:

- Explique-me então, Sr. Paul, como tudo seria se ele me amasse de verdade.

- Será que você não percebe, Marrie? Se ele realmente amasse você, ele jamais deixaria você trabalhar naquele lugar horrível, naquele bordel, jamais! Ele não permitiria que nenhum mal lhe acontecesse, ele lhe colocaria no colo todos os dias, e arrumaria um jeito de amenizar os efeitos que essas cicatrizes deixaram em você. Desculpe lhe dizer isso, Marrie, mas este homem só lhe usou.

Observei calmamente os olhos de Marrie encherem-se de água, assim como acontecera no dia anterior, quando estávamos na banheira. Contudo, antes que pudesse confortá-la, Marie me respondeu:

- Sabe, Sr. Paul, o que acabou de me dizer, fala muito mais sobre você do que sobre meu pai.

- Como assim, Marrie?

- Porque se antes havia em mim alguma dúvida, agora não existe mais: você não me ama, Sr. Paul. - continuou Marrie. - Você também me usou e depois esperou que eu voltasse à minha vida de prostituta. O senhor não pareceu se importar com isso.

 Marrie apoiou a testa em uma das mãos e disparou a chorar.

- E tem mais, Sr. Paul: Mr. Richard nunca transou comigo. Nunca tocou um dedo sequer em mim. Já escutara algumas vezes por aí que toda mulher se sentia única quando fazia amor com alguém que amasse. Engraçado é que eu não me senti única e nem me sinto melhor agora. Só me sinto mais puta.

E sem dizer qualquer palavra em resposta, apenas saí em silêncio da cafeteria, e segui às pressas para o hospital. Teria um longo dia.

Tive de ouvir durante todo o meu expediente de enfermeiras e médicos o quão sem coração eu era por estar abandonando Marrie. Parecia que todos estava sabendo de nosso término. E todos pareciam me odiar por isso.

Eu sabia que Mr. Richard tinha razão: Marrie era mulher que falava pelas entrelinhas, e que tocava o coração de cada um que passasse, nem que fosse de longe, por sua vida. E estava tudo bem claro agora.

Todos estavam do lado de Marrie, simplesmente porque era impossível não estar. Até eu estava. Eu sabia que tudo o que Marrie me dissera era verdade. Com exceção da parte do "Você não me ama, Sr. Paul."

Enquanto descansava de uma cirurgia, encontrei-me com David:

- Mas que belo teatro vocês fizeram, Dr. Paul! Não se fala em outra coisa neste hospital. - comentou David, sorrindo com o seu cinismo de sempre. - Estou indo para casa agora, mas hoje quando você sair daqui, nós podemos nos encontrar.

Não senti nenhuma alegria ao ouvir o convite de David.

- A que horas nos encontramos, Dr. Paul?

- Às nove.

- Combinado então, às nove passo aqui para te buscar.

Passei o resto da tarde pensando em tudo o que acontecera nos últimos dias. Na conversa com meus pais, nas atitudes de David, no sorriso de Marrie, em suas cicatrizes, no meu encontro com Mr. Richard... Estava pensando em tudo, menos naquilo que tinha vontade de fazer.

E a verdade, era que naquele momento, eu não sabia mais o que eu tinha vontade de fazer, nem em sequer no que havia me tornado. Minha cabeça me atormentava com uma enorme culpa, mas eu já não sabia mais do que era.

Porque se eu fosse um homem apaixonado por David, tudo estava indo para o caminho certo agora. Mas se realmente fosse apaixonado por ele, não teria dormido com Marrie. E se eu fosse apaixonado por Marrie, por que a teria deixado daquela maneira? Quando foi que a minha reputação se tornara mais importante que o meu modo de conduzir a vida? 

E por fim: o que cargas d'água estava acontecendo comigo?

Fui liberado mais cedo de meu horário, graças ao meu argumento de não estar me sentindo bem.

Quando saí do hospital, minha primeira visão foi a cafeteria de Sr. Brian. E lá estava Marrie, com óculos escuros, aparentemente dançando, ao lado de Sr. Brian.

Já era por volta de oito horas, e concluí que os dois estavam se divertindo, enquanto limpavam o ambiente. Mesmo sem poder ouvir qualquer som, via de longe que Marrie caíra na gargalhada, enquanto Sr. Brian se mexia de um modo estranho, certamente na tentativa de alegrá-la.

Pensei que aquele sim poderia ser um pai de verdade para Marrie. Que ali ela poderia ter uma vida de verdade, como ela mesmo dissera, com trabalho e com amigos de verdade. E comigo sempre por perto.

E sem perceber, meus pés me levaram não para o meu carro, mas sim para a cafeteria de Sr. Brian. Bati na porta duas vezes até que Marrie, espantada, atendesse:

- O que aconteceu, Sr. Paul?

- Eu vim pedir desculpas a você.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

PAUL E MARRIE - CAP. 8: HORA DE IR




- O quê? – perguntei atordoado, assustado, horrorizado e principalmente surpreso com  esta suposta visita de David.

- Seu amigo do hospital, filho, o David, passou aqui em casa agora mesmo, e disse estar muito preocupado com sua reputação. Disse que você está namorando uma prostituta chamada Maria. – minha mãe tinha os olhos perplexos de preocupação.

- O nome dela é Marrie. E ela não é uma prostituta.

A última coisa que eu parecia precisar naquele momento era dar uma satisfação da minha vida social para meus pais. Estava prestes a explodir de raiva, e de repente senti uma súbita inveja e ao mesmo tempo ódio da tranquilidade que Marrie tinha. Eu nunca soubera lidar com o ‘bullyng’ que sofria desde a faculdade, e me tornara um homem de poucas palavras por isso. É, estava claro agora. Era um homem de poucas palavras porque meu coração doía demais.

E então, em um belo dia de minha vida aparecia essa mulher, cheia de cicatrizes espalhadas pelo corpo, que já não me despertavam mais curiosidade sobre sua origem, que passara na mão de maluco por mais um tempo que eu também não tinha ciência de quanto havia sido, e por fim trabalhara em um bordel DE GRAÇA porque resolvera dedicar sua vida a outro maluco que fingira lhe salvar.

Meu coração batia acelerado. Minhas entranhas ferviam, e minha vontade era de voltar até aquele bordel e dar uma boa surra em Mr. Richard. Porque aquele homem jamais salvara Marrie.

Mr. Richard, ao meu ver, apenas assistira de camarote a crueldade que o tal do “ele” fizera, e simplesmente depois levou o que sobrou de Marrie, mental e fisicamente, para o seu bordel.

Porque se ele realmente quisesse salvá-la, ele jamais teria deixado o fogo arder em sua face. Jamais teria observado que a mulher que estava de mãos e pés atados não chorava no momento, e muito menos na cor dos seus cabelos. Se Mr. Richard amasse Marrie como eu amava naquele momento, teria matado o “ele” mesmo que estivesse cercado por seguranças.

E era por isso que negara que Marrie fosse uma prostituta. Porque para mim, Marrie não o era. E porque ali, diante dos meus pais, só queria que eles conhecessem o que Marrie tinha de melhor. E comecei a falar:

- Marrie não é uma prostituta. Marrie é apenas uma garçonete da lanchonete do Sr. Brian, que começou a vida agora... e ainda tem muito a conhecer.

- Então por que David veio até aqui conversar conosco? – minha mãe parecia confusa.

- David veio até aqui porque é homossexual. E é apaixonado por mim. – nunca pensei que contaria a verdade sobre David daquela maneira. Mas me sentira aliviado por fazer.

- E você, filho? – podia sentir o medo nos olhos de meu pai pela resposta que poderia dar. Mas não a dei.

Não respondi que também era homossexual e apaixonado por David. Só conseguia pensar no rosto e no sorriso de Marrie. E no fato de que nós éramos “mais que amigos”.

- Pai, eu estou apaixonado por Marrie.

- Mas, filho, ela é uma garçonete!

- Pelo menos não é um puta, George! – exclamou minha mãe. – Seria um desgosto enorme para nossa família você aparecendo publicamente com uma prostituta. Você é um médico renomado, professor da Universidade, Paul! Acorda! Eu sinceramente preferia que você namorasse o Dr. David, se fosse o caso.

- E o que eu sinto, não conta? – parecia um adolescente rebelde discutindo com meus pais sobre meus sentimentos.

- Ora, Paul, poupe-me desta conversa! Você não tem mais idade para isso, pense na sua carreira e no seu futuro. Garanto que será melhor assim. Vou me deitar. – falou Giulia, minha mãe, com lágrimas em seus olhos.

- Resolva o que tiver de resolver com esta moça, Paul. E depois volte para casa.

No fundo, eu sabia que meus pais tinham razão. E sabia também que David fizera o certo de ir até lá e falar a verdade. Este plano jamais poderia dar certo mesmo. Não arriscaria minha reputação de “Doutor-Anjo” por aqueles ruivos, por aquele “milagre do fogo”.

Decidido, voltei ao meu apartamento. E transei com Marrie. No chão da sala, na cama de meu quarto, na bancada da pia do banheiro. Sem dizer qualquer palavra. Apenas entre no apartamento, me despi e transei com Marrie a tarde toda.

Marrie me beijava e me mordia e eu sabia que ela estava completamente apaixonada por mim. Ela não fechou os olhos em momento algum. E não sei se isso era loucura da minha cabeça, ou culpa, mas parecia que mantivera seus olhos abertos porque sabia que eu iria embora.

Marrie desceu da bancada da pia, ainda trêmula, e ligou o chuveiro para que a antiga banheira se enchesse de água. Após alguns segundos, chamou-me:

- Já pode entrar, Sr. Paul.

Não havia um “bonitão” na frase. Marrie sabia que eu iria embora.

E quando entrei na banheira, Marrie também adentrou, deitando-se de frente para mim, roçando seus pés em meus ombros e tagarelando como havia sido colocar flores no túmulo da mulher de Sr. Brian com ele naquela manhã.

- Marrie, não posso mais continuar com este plano. Eu quero que você arrume suas coisas e amanhã leve a chave do apartamento para a cafeteria. Pegarei com o Sr. Brian e você pode voltar para o seu bordel. – a interrompi da maneira mais fria possível, e retirei seus pés de perto do meu corpo.

- O que foi que eu fiz, Sr. Paul? – uma brisa entrou pela janela do banheiro e fez com que as lágrimas presas nos olhos de Marrie se escorressem rapidamente por sua face. O que Marrie fizera para mim? Deveria eu responder-lhe a verdade?

Mas a pergunta que me fazia naquela hora era outra: o que fazer para tirar alguém do meu coração? E neste ponto, já não se tratava mais de David. Porque apesar de todos os anos vividos juntos, de tantos segredos compartilhados, a única certeza que tinha era que não era amor o que eu sentia por aquele homem. Era qualquer coisa que se aproximava de amor, mas que não era forte o bastante para se cristalizar como tal.

Porque se fosse amor, eu não o teria deixado de lado para estar naquela banheira com Marrie. Não teria desligado meu celular para ouvir apenas a voz da mulher que há pouco contratara para ser minha namorada.

Aqueles olhos de alguém que esperava qualquer coisa de mim me perseguiam dia e noite, como se de repente tivesse me tornado escravo de uma situação que eu próprio me colocara. E a questão que ferroava meu cérebro era o que eu iria fazer para não deixar entrar mais este amor em meu coração.

Seria fácil encontrar uma resposta se estivesse diante de uma mulher como tantas outras que conhecera no meu passado, mulheres que tanto se esforçaram para estar ao lado de um homem como eu, mas que no final das contas, simplesmente desistiam e me deixavam ir embora.

Contudo, o que estava diante de mim, nua e desajeitada como sempre, era uma menina com os olhos cheios d´água, paralisada sem saber o que me dizer. Pois Marrie também me amava. Amava-me tanto que me aceitara com a pior qualidade que um homem poderia ter perante uma mulher, e mesmo assim me olhava nos olhos com um silencio tão profundo que só me restava dizer que ali, entre nós, existia amor.

E quem um dia disse que o silêncio era a melhor das respostas, mal sabia o que se passava com aquela mulher. Porque em meio às lágrimas, à boca trêmula que não parava de morder, havia a vontade de falar. Não só de falar, mas também de se declarar, de me abraçar e de me fazer acreditar que tudo seria possível desde que nós estivéssemos juntos.

Entretanto, eu não estava ali para ser convencido, para ser tocado, para me descansar e me deixar levar. Eu podia não saber o que estava fazendo ali, nem sequer saber o que faria para tirar Marrie de meu coração. Mas de uma coisa eu sabia: não estava ali para me apaixonar.

Saí da banheira com calma e não me dei o direito de sequer enxugar meu corpo. Vesti minha roupa sem pensar em olhar para o lado e fui embora.

E esta foi a primeira vez que me afastei de Marrie.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

PAUL E MARRIE - CAP. 7: O milagre do fogo




Apesar de já estar alguns dias sem aparecer em casa, não segui o caminho para meu lar, conforme disse para Marrie. Precisava fazer algo antes. Não que realmente houvesse alguma necessidade de estar indo para aquele lugar, mas não conseguia parar de pensar e que precisava falar com alguém.

E como não poderia conversar com David, e nem com qualquer outra pessoa de meu convívio, fui até o único lugar em que poderia ser eu mesmo, além do apartamento de Marrie. Eu estava indo para o bordel de Mr. Richard.

- Doutor-Anjo, não imaginei que fosse voltar aqui tão cedo. – Mr. Richard tinha uma voz calma, e ao mesmo tempo dura, como se estivesse preparado para receber qualquer tipo de resposta minha. Havia um segurança dentro de seu escritório conosco, e outro do lado de fora, mas algo me dizia que não precisaria me sentir intimidado. Mr .Richard jamais faria algum mal ao Doutor-Anjo que um dia salvara-lhe a vida. – Há algum problema com Marrie?

- Não, não, de maneira alguma. – gesticulava com as mãos, fazendo um sinal negativo, e depois retirei os óculos do rosto, como sempre fazia ao tocar em um assunto delicado. – Eu gostaria mesmo era de lhe fazer uma pergunta, Mr. Richard, se o senhor não se importar em respondê-la.

- Pois a faça, meu jovem.

E sem mais rodeios, perguntei àquele cafetão o que tanto me angustiava:

- Por que Marrie se tornou uma prostituta? – não havia eufemismo, nem carinho, nem qualquer palavra que suavizasse o que eu queria saber. Apenas o fitei durante alguns segundos e expus minha dúvida: por que aquela mulher tão linda e tão sensível se tornara uma puta.

E como acontece em qualquer clichê de filme, Mr. Richard acenou para seu guarda-costas, e por um momento achei que fosse ser retirado dali à força.

Todavia, o homem que estava ali dentro conosco, apenas se aproximou de Mr. Richard e acendeu o seu cigarro. Lembrei-me que estava em abstinência e desejei profundamente também fumar com ele, mas não achei prudente.

- Sabe, Doutor-Anjo, eu poderia lhe responder esta pergunta com uma única frase, mas Marrie, como o senhor já deve ter percebido, não é o tipo de mulher que respeita o óbvio. Ela insiste em conversar pelas entrelinhas.

Mr. Richard fez uma pausa enquanto tragava, e quando expirou a fumaça, propositalmente a soprou em meu rosto. O cheio da nicotina misturada com tantas outras substâncias penetrou por minhas narinas, e eu só conseguia pensar em Marrie me dizendo mais cedo que éramos mais que amigos.

- Se você pensa que Marrie bateu em minha porta procurando por um emprego, está muito enganado, Doutor. – continuou o cafetão. – Eu achei Marrie na rua e a trouxe para cá.

“Há oito anos, ainda era viciado em cocaína, e tinha acabado de comprar o que precisara, e estava voltando sozinho e a pé para o bordel.

Foi quando passei por um beco e vi que ali estava acontecendo um “acerto de contas”, se é que o doutor me entende.

Sempre tive muito prazer em ver alguém morrendo tão próximo a mim, e não consegui evitar a ideia de me esconder e assistir ao show que estava por acontecer.

Marrie tinha apenas treze anos, e estava nua, completamente amarrada e espancada, enquanto olhava para o chão. Estava prestes a morrer, e nós dois sabíamos disso. Seus cabelos castanhos cobriam seu rosto, mas dava para ver perfeitamente que seus olhos estavam inchados de tanto apanhar.”

- Mr. Richard... –eu o interrompi, porque Marrie era completamente ruiva, não poderíamos estar falando da mesma pessoa.

- Calma, Dr. Paul, sei muito bem o que vai me dizer. Mas antes, te respondo: Marrie é um milagre do fogo. Seus cabelos nem sempre foram ruivos. E não sei se existe alguma explicação da medicina para isso, mas aquela mulher há oito anos tinha o cabelo de outra cor.

“Continuando... Marrie estava diante do homem que até hoje é o mais temido de nossa região. Nunca antes o tinha visto ao vivo, mas quando vi que ele estava ali, naquele beco, sem a presença de nenhum protetor, acertando seus negócios com aquela mulher, sabia que se tratava dele.”

Não tive coragem de perguntar quem era “ele”, e nem Mr. Richard teve a intenção de me dizer quem era.

“As cicatrizes de Marrie estavam em sangue vivo, brilhando, como se estivessem sido reabertas várias vezes, para que não se perdessem com o tempo. Ele começou a jogar gasolina nos cabelos de Marrie e em seu rosto, como se estivesse lhe dando um banho. E Marrie sabia que aquele seria o banho da morte.

E por fim, ele acendeu o isqueiro, e observou o rosto de Marrie arder em chamas por alguns segundos, até que foi embora. Eu rapidamente me escondi e esperei até que ele tomasse alguma distância, até que eu pudesse entrar no beco. Mesmo de mãos e pés atados, Marrie, completamente indefesa, não gritava, nem se contorcia, apenas esperava a hora que seu corpo cansasse de viver.

Na hora, não sei se foi efeito do pó, ou o restante de espírito humanitário que ainda existia em mim, fez com que eu apagasse o fogo que queimava em Marrie, e desamarrasse seus braços e pernas. Marrie estava completamente consciente, mas era incapaz de dizer uma palavra.

Carreguei-a, nua, em meu colo, por quatro quarteirões, e ninguém notou a nossa presença. É engraçado como a vida é, doutor: na rua dos pecados não há espaço para milagres, e quando estes acontecem, passam despercebidos.

Quando cheguei com ela aqui, não houve gritos, confusões, ninguém disse nada. Ainda não sabia o por quê, mas chamei uma curandeira que cobriu o rosto de Marrie com folhas, ervas e um pano molhado por cima, durante sete dias, para que ela se curasse. Queria mais do que qualquer coisa na vida salvar aquela mulher. Sabia que não iria me arrepender.

E passados os setes dias, Marrie abriu os olhos, e disse com muita dificuldade que Deus havia lhe dado uma oportunidade de viver, e que ela iria dedicar esta vida a me obedecer.

Os cabelos de Marrie demoraram mais de seis meses para crescerem de novo, mas eles voltaram. E ruivos, como são hoje. Marrie disse que era o milagre do fogo, e assim acreditei.

O fato, Doutor, é que desde o primeiro dia em que Marrie chegou aqui, a vida de todo mundo mudou. Não sei o que ela faz, nem como ela faz, mas ela faz! Não quis que aquela menininha, que eu adotei como filha, denegrisse a vida como a minha se fora. Não, eu não queria isso para ela, doutor.

Contudo, aos poucos fui percebendo que nada mais poderia danificar a alma de Marrie, como assim ela falava, pois esta já estava comprometida por inteiro. Marrie não tinha mais salvação. Então, deixei-a a fazer tudo que tinha vontade: de manhã, ela limpava o salão principal até que este ficasse impecável. Fazia o almoço, e depois estudava alguns dos cinquenta livros que eu lhe comprara. Sempre de rosto coberto, para não assustar ninguém, como ela mesma dizia brincando. Marrie se prostituiu sim, doutor, e não foi pouco, não! Inclusive, inúmeras vezes, ela teve que dar pra “ele”.

É. Para ele mesmo, doutor, porque ele vinha aqui sempre depois do que aconteceu no beco. E queria comer ela. Sem saber que era ela. Porque gostava de comer aquela mulher que ele não podia ver nem o rosto, e nem o corpo. Porque quando ele vinha aqui, o “trabalho” tinha que acontecer no breu total, senão ele poderia ver as cicatrizes e reconhecê-la.

E teve um belo dia, em que ele surtou dentro do quarto e arrancou a venda que Marrie usava. E ele viu seu rosto, seu corpo, e a única coisa que ele teve coragem de dizer foi: “Vagabunda, acho que te conheço de algum lugar.”

Depois desse dia, fiquei com medo de que “ele” se lembrasse de Marrie e voltasse para terminar o serviço. Então paguei a reconstrução facial dela e tirei-a dos trabalhos. Não dava mais para arriscar.”


Mr. Richard continuou falando que Marrie nunca exigira nada dele além de um prato de comida e um banho morno por dia, mas eu já não conseguia ouvi-lo mais. Nem sabia se podia acreditar naquela história horrenda, mas era impossível que não fosse verdade.

Marrie tinha todas aquelas cicatrizes e realmente, era uma mulher de entrelinhas. Mr. Richard não precisaria detalhar tudo que ela fizera para mudar sua vida, porque eu já tinha certeza de tudo o que ela era capaz. Também não sabia como e o quê ela fazia, mas também tinha certeza que ela fazia. E pronto.

- Então, Doutor-Anjo, como você vai fazer? – perguntou-me, Mr. Richard. Estava tão distraído, ainda assustado com a história, que não sabia do que ele falava.

- Fazer o quê, Mr. Richard?

- Ora, Dr. Paul, me desculpe. Mas este plano do senhor-doutor não tem como dar certo.

- Por quê, Mr. Richard? – não sabia eu naquele momento, mas esta, já era uma pergunta retórica.

- Doutor-Anjo, você sabe muito bem que o seu namorado, ou seja lá o que ele seja, não vai se divorciar daqui 30 dias e nem daqui 30 anos. Como você vai fazer? Vai levar este plano absurdo até quando?

- Mr. Richard, David vai se separar e então eu lhe devolverei Marrie, não se preocupe.

- Ah, doutor, quem dera minha preocupação fosse esta. – Mr. Richard apagara seu terceiro cigarro.

- Então, qual é?

- Doutor-Anjo, Marrie está completamente apaixonada por você.

Sem me despedir, e sem qualquer explicação a respeito da última frase de Mr. Richard, deixei aquele bordel. Sabia que não era nenhum absurdo o que ele me dissera, pois também me sentia da mesma maneira. Também estava apaixonado por Marrie.


Contudo, eu não sabia lidar com o que sentia, pois para mim, não era possível que uma pessoa apaixonada por um homem de repente se apaixonasse por uma mulher. E então meus pensamentos se confundiam, pois não era apenas “uma mulher”. Era Marrie. Marrie e seus cabelos ruivos que surgiram do fogo. Marrie e seus olhos de amor ao lavar meus cabelos, assim como um dia o “ele” fizera com os seus, mas com gasolina.

Marrie que tinha um corpo maravilhoso, mesmo com todas aquelas cicatrizes, mesmo com toda aquela dor em seu coração.

Precisava resolver tudo o que estava acontecendo comigo, precisava entender o que se passava em meu coração. Voltei para casa, perdido em meus devaneios, e quando entrei na sala de estar, meus pais me esperavam:


- Paul, nós precisamos conversar. – disse meu pai, de maneira fria, e ao mesmo tempo preocupada. – David acabou de sair daqui e nos deu uma notícia muito perturbadora: ele nos contou que você anda saindo com uma prostituta.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O verbo 'perder'.

E como alguém que já passara dias e dias a caminhar, chego ao meu ápice: não preciso mais de pés no chão. E não se engane você que pensa que de repente criei asas, libertei-me e então me tornei capaz de viajar sem tocar o chão.

Não, não, muito pelo contrário. Meu estado de espírito não vem falar de um momento angelical desta vez. Não tenho mais meus pés no chão por ser tão exaustiva essa caminhada. Precisei me ajoelhar.

E é de joelhos, na forma imaculada da súplica, que sinto escorrer pela minha face as lágrimas até então perdidas. Lágrimas perdidas, vindo de um ser que sabe exatamente o caminho a seguir. Lágrimas perdidas não por estarem no lugar errado, mas o oposto: as lágrimas estão perdidas porque sabem claramente aonde irão chegar.

Porque em meio a este nosso vocabulário tão restrito, perder nem sempre significa estar fora trilha. Perder-se é, ás vezes, permanecer-se aonde se está.

Não quero mais estar aonde estou. Quero perder-me por outro lugar. E lugares. E todos os plurais que me façam ver a literalidade das coisas. Quero perder-me por não saber mais aonde estou.

Quero estar literalmente perdida. Que nada mais é que pisar em lugar aparentemente conhecido e então descobrir que não. Que ele não é. E que ali ainda há chance para mim.

Que ali ainda há chance para este ser que está ajoelhado, com tanta vontade de perder-se nos dias, e não mais perder seus dias.

Porque entenda, meu caro, há uma exímia diferença entre perder-se nos dias e perder seus dias.

Perder-se nos dias é como viver um momento tão exaltadamente bom que se esquece do tempo, dos compromissos, do resto da vida. Todavia, perder os dias é desperdiça-los, jogá-los fora, de entrega-los para a rotina e para tudo aquilo que não é eu. Eu que sou um ser tão perdido.

E não me leve a mal, pois a culpa não é minha. Este vocabulário restrito é que não possui palavras suficientes para descrever minhas emoções e então é preciso se usar a mesma palavra pra definir tantas outras situações. Tantos outros “eus”.

Sinceramente, o que busco nessa posição, de estar de joelhos, é que minhas lágrimas tão perdidas convidem você por meio deste aviso:

- Estou prestes a ir, Marujo! Venha se perder comigo, ou então quem perderá a mim, será você.


E não mais eu.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

PAUL E MARRIE - CAP. 6: O BANHEIRO DE MEU APARTAMENTO




Acordara mais uma vez, assustado, por adormecer ali, no meu sofá, enquanto conversava com Marrie. Levantei, fingindo nada demais ter acontecido, e me sentei para tomar o café.

- Sr. Paul, bom dia.

- Bom dia, Marrie... o que temos para o café? – perguntei, animado.

- Sr. Paul, não me leve a mal, mas acho que antes o senhor precisa tomar um banho. – por mais que Marrie estivesse embaraçada ao me falar aquilo, havia um sorrido sapeca em seu rosto. Marrie sabia que eu estava me apaixonando por ela.

A primeira indagação que passara pela minha cabeça era: “ Mas o que diabos estava acontecendo comigo?”. Como seria possível que eu tivesse me esquecido de um hábito tão essencial como um banho nestes dois últimos dias? Senti vergonha de mim, e também senti vergonha de Marrie, pois aparentemente minha situação já a estava incomodando.

- Você tem razão, eu jamais imaginei que fosse passar tanto tempo por aqui, desculpe-me p...

- Sr. Paul, - interrompeu-me Marrie. – eu não pedi que o senhor fosse embora daqui. Eu apenas sugeri que o senhor tomasse um banho antes de fazer seu desjejum.

“Desjejum”. Podia parecer preconceituoso de minha parte, mas fiquei me perguntando aonde aquela pequena mulher aprendera este dentre tantos outros vocabulários aprimorados. Porque estava claro que Marrie não frequentara escola alguma.

E enquanto eu fazia inúmeras questões mentalmente sobre a vida de Marrie, percebi que já estava me despindo no banheiro, enquanto ela me observava.

- Ora, Sr. Paul, não me olhe com esta cara! – Marrie ria graciosamente, como se tudo aquilo fosse um fato do cotidiano. – Somos uma puta e um gay, o que de mal pode nos acontecer?

A resposta estava na ponta de minha língua: o que eu desejo que aconteça. Que nós dois nos apaixonemos por termos tantas diferenças, e ao mesmo tempo tanta sintonia. Que possamos deixar para trás todos os nossos conflitos internos e viver então uma vida que não lhe causará mais cicatrizes. Nem em seu corpo, e nem em seu coração.

Todavia, antes de um “Doutor- Anjo”, tratava-me de um homem covarde, que preferia o “socialmente correto” àquilo que se passava dentro de mim. E o  máximo que fiz, foi dizer:

- Você tem razão, Marrie. E por favor, para de me chamar de “Sr. Paul”.

- Do que você quer que eu lhe chame, então?

Espontaneamente, e pela primeira vez após estes poucos dias ao lado daquela mulher, respondi o que realmente desejava.

- De “bonitão”, Marrie. Gostaria que continuasse me chamando de “bonitão”.

- Então, bonitão, vamos lavar esta cabeça. Homens-anjos precisam estar sempre cheirosos. – Marrie já estava abrindo o xampu e massageando o meu couro cabeludo.

Foi engraçado, pois não me senti como uma criança, que tem sua mãe para lhe dar banho e lavar seus cabelos. Naquele momento, eu me sentira um homem viril, um ser amado, um ser tão amado que já não poderia mais tomar um banho sozinho. Um homem que merecia fazer tudo a dois.

Marrie fora buscar o meu café-da-manhã, e enquanto isso, eu me deitara na banheira que mal me cabia, enquanto esperava ela encher-se de água.

Quando Marrie voltou, equilibrava em suas mãos um prato com sanduíche e um suco de laranja.

- Agora sim, eu deixo você tomar seu café-da-manhã. – enquanto brincava comigo, Marrie ia se despindo.

- M-marrie, o que você vai fazer? – gaguejei, porque já sabia a resposta.

- Vou entrar na banheira com você, bonitão. – mais uma vez, completamente nua, frente a frente comigo, Marrie sorriu.

- Marrie, - disse, tentando me levantar. – Não tem espaço para nós dois aqui.

Mas Marrie já havia entrado na banheira e deitado de costas para mim. Sobre mim. E por mais que antes tivesse tentado me levantar, sabia que tentara de uma maneira devagar, bem devagar, pois não me saía da cabeça a ideia de sentir o corpo daquela mulher encostado no meu. Precisava saber como era ter Marrie tão perto de mim.

- Claro que há espaço, bonitão. Sempre há espaço para dois aonde antes não havia nenhum.

- O que quero dizer, Marrie, é que não sei se é certo nós dois ficarmos assim em uma banheira.

- O que tem de tão ruim em estar aqui comigo? Não somos amigos?

Sorri antes de lhe responder:

- Sim, Marrie, nós somos amigos. Mas não creio que amigos se comportem desta maneira.

- Então somos mais que amigos, Sr. Paul.

Marrie inclinara seu rosto para trás e olhara em meus olhos. Era impossível não sorrir ao ouvir o que ela tinha dito. Quis beijá-la, quis sentir seus lábios apertarem os meus novamente, mas, mais uma vez concluí que não seria o melhor a se fazer.

Apenas puxei um assunto banal que Marrie deu continuidade, e voltou a ficar de costas para mim. Contou-me sobre seu emprego na cafeteria, que havia combinado de ir hoje ao cemitério colocar flores no túmulo da mulher de Sr. Brian juntamente com ele, que havia feito amizade coma enfermeira Madalena, entre outras coisas. Não prestei atenção em nada do que ela dissera. Era impossível parar de olhar para suas costas e desejar passar os dedos sobre as cicatrizes em seus braços e ombros. Marrie estava claramente feliz.

Após o nosso demorado momento na banheira, já que não poderia chamar o que acontecera de “banho”, vesti uma roupa limpa que ficara guardada no armário e me dirigi para me despedir de Marrie. Precisava voltar para minha casa.

- Até amanhã, Marrie.

- Até amanhã, bonitão.

- Quero lhe pedir uma coisa: prometa-me que não levará seus novos amigos ao banheiro, assim como fizera comigo. – dizia aquilo em tom de brincadeira, porém não poderia ir embora daquele apartamento sem ter a certeza de que aquele momento seria só nosso.

- Mas é claro, bonitão. Você mesmo me ensinou hoje que um banho a dois não foi feito para amigos. Precisa ser mais que isso para se ter este momento.


Quando saí do apartamento, e já estava na rua, vi que Marrie me observava da sacada. Acenou-me com um beijo e um “tchau” com as mãos. Eu devolvi o aceno e caminhei até o carro com uma única certeza: Marrie tinha razão. Éramos mais que amigos.