quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

PAUL E MARRIE - Cap. 20: A reviravolta de Marrie

(FOTO:http://www.flickr.com/photos/tpridemore/5402408029/sizes/m/in/photostream/)

Como uma criança que vai embora obrigada de algum lugar, entrei no banco de trás do carro, e em meio as minhas lágrimas fui deixando o hospital e a minha cidade para trás.

Parecia que aquela viagem duraria o dia inteiro, lembrando-me a cada segundo que Marrie estava nas mãos de David em uma sala de cirurgia. Não conseguia parar de chorar, até que no fim adormeci dentro do carro e quando acordei, já estava frente a frente com o meu novo destino.

Era uma casa de campo, enorme e branca, com largas janelas e uma varanda que rodeava toda a casa. Dois cachorros aparentemente do local vieram nos receber com latidos e urinas nas rodas do carro. Meus pais estavam me levando à fazenda que um dia fora de meus avós.

A casa era toda de madeira, impecavelmente limpa e polida, e sentia-me como se estivesse no tempo de meus avós quando entrava ali. Os móveis e suas disposições, a rotina da casa, tudo permanecera da mesma maneira desde os seus falecimentos. Não tínhamos o hábito de frequentar aquela casa devido à longa distância e o difícil acesso. Nada mais justo do que escolher ali para que eu pudesse me refugiar. Lembrei-me do rosto de Marrie indo para a sala de cirurgia.

Deixei meus pais discutindo na sala e de estar e fui até a antiga biblioteca de meu avô, pois lá com certeza iria encontrar um minuto de paz.

Fora ali que me decidira ser médico. Ali naquela biblioteca, onde sempre via meu avô fumar enquanto lia algum romance antigo. Tudo estava da mesma maneira, com exceção de uma coisa: não sentia mais glamour ao entrar naquele cômodo. Meu coração doía, pois sabia que dali a alguns meses eu provavelmente perderia o direito de exercer a Medicina. Direito que dediquei ao meu avô e ao meu pai. E agora não era mais o orgulho da família.

Sentei-me em sua poltrona e encontrei na cômoda ao lado charutos cubanos que pareciam estar à minha espera. Não demorou mais que alguns segundos para que eu os cortasse e os acendesse como um dia Mr. Richard fizera na minha frente. Pouco me importava o tempo que já estava em abstinência. Fumar, àquela altura do campeonato, me parecia ser o mais sensato. E após acender o cigarro, caminhei pela biblioteca até que encontrasse uma garrafa de uísque. Eu também precisava me embriagar.

Uma, talvez duas horas depois, minha mãe apareceu me contando a seguinte notícia: acabara de conversar com David pelo telefone e estava tudo bem com Marrie. Não acreditei, a princípio, quando ouvi de minha mãe. Precisava ouvir a voz de Marrie para ter certeza que tudo estava bem.

Mas minha mãe não tinha terminado de me contar a conversa com David, e então me calou com os dedos e prosseguiu no assunto. David dissera que estava tudo bem com Marrie e que dali a três dias ela teria alta do hospital. E, além disso, ele pensara bem em tudo o que acontecera, e ficara muito impressionado com o ocorrido no hospital, o que o levara a tomar a seguinte decisão: ele retiraria a queixa perante o Conselho Federal de Medicina e a polícia, e também adulteraria o exame de DNA, para que não fosse encontrado o culpado para o crime e então eu pudesse voltar a morar na cidade.

Contudo, David tinha uma exigência. Uma pequenina exigência que poderia ser facilmente cumprida por mim: eu deveria enviar uma carta para Marrie terminando o nosso relacionamento e nunca mais ter qualquer tipo de contato com ela. Como meu pai anteriormente previra, era a hora de escolher: a minha carreira como médico ou o amor de Marrie.

No momento, já me encontrava embriagado e estava muito difícil ouvir e compreender tudo o que minha mãe me dizia. Apenas conseguia ouvir e sentir meu coração batendo com força em meu peito. Ele me dizia “não”. Ele me implorava para que eu negasse tudo aquilo que estava escutando e apenas respondesse “não”.

E obviamente, meu caro leitor, eu fiz exatamente o que você deve estar imaginando: eu não segui meu coração. Sentei-me a mesa de estudos de meu avô, peguei um papel e coloquei-o grosseiramente na máquina de escrever. E assim ficou a carta que escrevi para minha pequena Marrie:

“Marrie,
Creio que David já tenha conversado com você e você já esteja ciente do motivo pelo qual eu lhe escrevo.
Perdoa-me por me despedir de você por esta carta, mas temo que seja a única maneira que nos resta. Desta vez será definitivo. Não poderemos ficar juntos.
Infelizmente, a vida me fez chegar a um ponto em que fiquei dividido entre dois aspectos que deveriam coexistir, mas que não o fazem: a minha vida profissional, e o meu coração.
E não posso simplesmente desistir de uma vida que lutei com muito esforço e anos de estudos para conseguir. O meu sonho sempre foi ser o que sou hoje.
Espero que você me entenda, Marrie. E espero que você seja feliz, pois você foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida.
Com certeza não demorará muito para que você conheça um novo alguém, e é isso que lhe peço: siga a sua vida e esqueça que um dia nós fomos um só.
Não acho necessário que você me responda esta carta.
Passar bem,
Paul.”

Esperei por uma semana a resposta de Marrie, e então desisti de receber uma última notícia dela. Sabia que era uma contradição esperar uma resposta de alguém que eu pedira para não me responder, mas era tudo que eu mais queria.

Passava dia e noite fumando e bebendo naquela casa, andando de um cômodo para o outro, esperando o momento em que meus pais me buscassem ali novamente para que eu voltasse a ser o “Doutor-Anjo” do hospital.

Mas como você também deve estar imaginando, meu caro leitor, David não desfez a denúncia nem no Conselho Federal, e nem na polícia. Passados dois dias, um camburão chegou até a fazenda e prestei o meu depoimento ali, já que corria riscos em ir para a cidade.

Estava isolado, incomunicável, e morrendo de saudades da minha mulher. Aos poucos, fui deixando a barba e o meu cabelo crescer. Vaidade era a última coisa que sentia naqueles tempos. Só queria receber a data de meu julgamento e encontrar com algum advogado. Todavia, as únicas pessoas que via eram os empregados da casa. E mais ninguém.

Passaram-se seis meses. Nenhum julgamento estava marcado, nenhum advogado da família fora me visitar, e sequer meus pais iam até a fazenda, pois qualquer passo deles era perigoso demais para a minha segurança. A única notícia do mundo fora da zona rural que tinha era pelos jornais que um de meus funcionários fazia questão de trazer todos os dias. E foi ali que vi uma foto de Marrie.

Logo depois que fugira para a fazenda, outra tragédia acontecera: Sr. Brian sofrera um infarto fulminante, caindo no meio da cafeteria em um dia de Sol. Mesmo com inúmeros médicos e enfermeiros presentes no acontecimento, nada mais se podia fazer por ele. Era mais uma pessoa que Marrie perdia.

Porém, Sr. Brian deixara um testamento, e nele havia uma única cláusula: a cafeteria agora era de Marrie.

E em quatro meses, Marrie conseguira reativar as caixas de som, que uma dia foram palco de uma noite perfeita entre nós três, reformar a fachada do local, enchendo-a de flores, e comprar um novo letreiro para ali, com o dizer: “A Cafeteria de Nosso Sr. Brian”. No seu interior, enchera de fotos dele com a sua esposa. Era como se os dois ainda estivessem ali.

E agora, lá não era um lugar pequeno apenas frequentado por médicos. A Cafeteria de Sr. Brian virara um point de encontro na cidade, com mesinhas na calçada e três novos funcionários. Marrie parecia muito feliz na capa do jornal. Apesar de preto e branco, podia ver como seus cabelos estavam cada vez mais lindos, brilhosos, e cheguei a pensar se ela ainda continuava a usar o xampu que um dia eu lhe dera.

Não controlei minhas lágrimas, muito menos minha vontade de vê-la. Paguei ao meu funcionário para que me levasse até a cidade. Eu precisava ver Marrie, nem que fosse de longe.

Fomos de carroça e demorou mais de três horas até que chegássemos ao centro da cidade. Fora uma viagem exaustiva, com Sol forte, mas nada que me fizesse desistir de ver a minha mulher mais uma vez.

Mesmo que alguém me visse, estava irreconhecível. Cabelos grandes, a barba completamente desleixada, um chapéu na cabeça e chinelos de dedo nos pés e sentado em uma carroça, jamais alguém me chamaria de “Doutor-Anjo”. E fora desta maneira que me aproximara da Cafeteria que agora era de Marrie.

A foto do jornal representara muito bem como esta o lugar: esplendoroso. Com certeza o dom da vida de Marrie, além de fazer os outros felizes, era o empreendedorismo. O lugar estava lotado. Pessoas rindo, conversando e se movendo por toda a calçada. Senti uma pontada no peito. Era meu coração me mostrando que ainda não perdoara por não ter dito “não” naquele dia.

Após alguns minutos sentado na carroça, estrategicamente posicionada um pouco distante da cafeteria, vi Marrie saindo da cafeteria com uma bandeja repleta de doces nas mãos. Havia algumas crianças na porta, com certeza já a sua espera. Todos pularam de alegria, enquanto pegavam os doces e saíam correndo pela calçada.

Deu-me uma enorme vontade de correr para os seus braços, ajoelhar no chão e pedir desculpas, dizer que precisávamos ficar juntos novamente. Mas quando pensei em sair da carroça, meu funcionário me segurou com as mãos.

E de repente um homem se aproximara de Marrie. Trazia consigo um buquê de flores, com várias rosas e algum outro tipo de flor que não sabia definir. Marrie sorrira para ele com afeto e pegara as flores com carinho.

Assustado com a cena, peguei os óculos que se encontravam pendurados em minha camisa e os coloquei no rosto para enxergar melhor Marrie. Havia um anel de noivado em sua mão.







quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

PAUL E MARRIE - Cap. 19: O pior dia de minha vida

(FOTO: http://www.flickr.com/photos/gkom/5877580901/sizes/z/in/photostream/)


Quando acordei na manhã seguinte, não fazia a menor ideia do que estaria por vir, nem tampouco Marrie. Também não fazia a menor ideia de como conseguira dormir na noite anterior, pois se jamais me imaginara tendo a coragem e frieza para matar um homem literalmente com as minhas mãos, que dirá ainda poder dormir depois de todo o ocorrido. Mas fora assim, meu caro leitor, eu conseguira dormir perfeitamente naquela noite, e só anos depois fui capaz de entender que só dormira naquele dia porque tinha a plena certeza de que Marrie e eu estávamos seguros. Não havia mais “ele”. Éramos agora apenas “eu” e “ela”. Pena que mais uma vez este relacionamento perfeito duraria tão pouco.

Marrie ainda estava deitada da mesma maneira que na noite anterior, nua e com a tatuagem exposta. Passeei meus dedos cuidadosamente pela arte em tinta, no desejo de sentir o seu relevo sem despertar a minha mulher. Todavia, Marrie já se encontrava acordada:

- Me perdoa por ontem, bonitão. Eu não devia tê-lo deixado aqui, da maneira como fiz. Mas eu precisava ir até o estúdio e fazer esta tatuagem. Pois quando me dei conta de tudo o que você fizera, Paul, eu sabia que eu precisava marcar você em minha pele assim como “ele” um dia se marcou em mim. Porque você vai me deixar também. – Marrie virou-se de frente para mim, e mais uma vez eu vi aquela mulher, com aqueles longos e ruivos cabelos, chorar enquanto conversava comigo.

- Marrie, isto não vai mais acontecer, eu já lhe prometi.

- Paul, você não entendeu ainda o que aconteceu: eu tenho certeza que o Dr. David irá denunciá-lo, e então estará tudo acabado. Você vai responder a um processo, e quando chegar a hora final, você vai ter que escolher, bonitão, se você ama mais a esta mulher que até ontem era uma prostitua ou se você ama mais a sua carreira. Seu pai falou certo, Paul, infelizmente não haverá maneira de você ter ambas ao mesmo tempo.

Entreolhei Marrie por alguns instantes e não lhe respondi nada. Fizemos amor como nunca havíamos feito antes. Era como se todos os meus atos fossem apenas a prévia de nossa despedida. Não fechei os olhos por um segundo sequer.

Não era meu dia de fazer plantão, mas estava claro que precisava voltar ao hospital para verificar como as coisas estavam, e principalmente conversar de maneira mais branda com David. Eu precisava lhe implorar este favor. Não podia ser denunciado pela morte de “ele”, pois a meu ver, não fizera mal algum. É claro que tinha plena consciência que assassinara a sangue frio um homem indefeso que precisava ser operado, mas a meu ver, meu caro leitor, nem sempre a morte é algo ruim. Ruim seria o que estava por vir.

Marrie tentou pegar a minha mão enquanto caminhávamos até o hospital, contudo sem conseguir receber um singelo gesto de afeto de mim. Estava muito preocupado e tremendo demais para conseguir andar de mãos dadas com aquela pequena mulher.

O hospital estava repleto de policiais, seguranças e pessoas da imprensa tentando adentrar no recinto. Senti-me muito mais aliviado quando Marrie eu passamos despercebidamente por eles, sensação esta que não durou mais que alguns segundos, pois assim que entramos no hospital, vi ao final do corredor meu e pai e minha mãe sentados, provavelmente já à minha espera.

- Paul, meu filho, - disse meu pai, abraçando-me com força. – eu sei que nós estamos muito distantes um do outro, mas ninguém irá abandoná-lo neste momento difícil. Sua mãe e eu viemos aqui busca-lo para que você fique em um local seguro até que tudo isto se resolva.

- Lugar seguro?! – exclamei, incrédulo.

- Não sabia que esta puta, além de o seu juízo, também tivesse roubado a sua inteligência. – os olhos de minha mãe brilhavam de ódio. – Você passou dos limites por esta mulher, Paul!

- Eu não estou entendendo nada sobre o que vocês estão me falando.

- Ficou sonso também, filho? Porque, pelo o que eu saiba, ontem a tarde você matou um homem dentro deste hospital por conta da vagabunda que você levou para morar você. E se não bastasse você ter cometido um crime dentro do seu local de trabalho, você fez questão de caprichar na escolha da vítima: o criminoso mais procurado desta cidade! Então faça-me o favor de calar a boca agora e nos obedecer! Precisamos ir embora daqui antes que alguém te encontre e faça algum mal a você. Por pior que você tenha se tornado, você não deixou de ser meu filho.

- Como vocês estão sabendo de tudo isso? E tão rápido?

- Ora, Paul, graças a Deus, o seu amigo David não ficou com raiva de você pela forma como você o tratou naquele dia. Ele é seu amigo de verdade. Assim que o Conselho Federal de Medicina o contatou para lhe informar da sua denúncia, ele na mesma hora nos ligou para que pudéssemos encontrar um lugar para lhe esconder.

- CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA? – meu coração começara a disparar.

- Sim, Paul, o David disse que a mesma pessoa que o denunciou à polícia também o fez ao Conselho Federal de Medicina. Não se preocupe, pois nós iremos resolver tudo isso...

- Mãe, será que você não percebe?! FOI O PRÓPRIO DAVID QUE ME DENUNCIOU!

- Olha, Paul...

- NÃÃO!

E tudo aconteceu em um segundo.

No meio de minha discussão com meus pais, Marrie gritou em desespero. Nós três, conjuntamente, viramo-nos em sua direção para ver o que estava acontecendo. Já era tarde demais.

Um homem encapuzado apontava uma arma em minha direção e não pensou duas vezes ao dispará-la. Nem ele e nem Marrie pensaram duas vezes, porque a minha pequena mulher jogou-se na minha frente para receber as balas que iriam me atingir.

Rapidamente policiais o imobilizaram, todavia, não antes que Marrie fosse atingida. Estava caída no chão, acordada, e gemendo de dor. Ao olhá-la superficialmente, sabia que não iria morrer, mas precisaria de cuidados médicos urgentes.

- DESTA VEZ, “DOUTOR-ANJO”, DEUS CONSEGUIU TE SALVAR. MAS NA PRÓXIMA NÃO VAI TER UM RABO DE SAIA PRA TE PROTEGER NÃO. TU É UM CARA MORTO A PARTIR DE AGORA. – disse-me o homem enquanto era levado pelos policiais para fora do hospital.

Fingi não ouvir o que ele disse e comecei a examinar Marrie:

- Vai ficar tudo bem, Marrie. Respira fundo.

- Desculpe-me, Dr. Paul, mas como existe uma denúncia em seu nome, que inclusive já está com quase todo o material pronto, pois desde ontem a noite os policiais estão aqui, examinando o corpo e conferindo se as digitais que existem nele batem com o seu cadastro de DNA aqui do hospital... – David sorria maliciosamente enquanto cuspia a notícia para mim. – Mas como estava dizendo, como você é suspeito de um crime de homicídio, infelizmente você não pode mais exercer sua profissão de médico neste hospital. E nem em lugar nenhum. Vamos, Lydia e Roberto, coloquem esta mulher na maca. Hoje quem vai cuidar dela sou eu.

Antes que pudesse responde-lo, minha mãe me disse:

- Paul, escute o seu amigo David. Eles vão tomar conta da sua namoradinha. Agora você precisa ir embora. Você viu o que acabou de acontecer? Tem muita gente que quer você morto, meu filho, escuta a sua mãe pelo menos uma vez nesta vida! Vamos embora enquanto ainda há chance... Temos o lugar certo para você.

- Eu não vou deixar Marrie nas mãos do David. Eu vou para a sala de cirurgia agora. A minha mulher precisa ser operada.

- Não, você não vai, Dr. Paul. Nem por cima do meu cadáver. Não vou arriscar a reputação deste hospital por um mero capricho seu. Quem vai operar a sua mulher hoje sou eu.

- Paul, vamos embora, meu filho, largue de teimosia, ela vai ficar bem. – minha mãe tentava me agarrar pelo braço, sem obter sucesso algum.

- EU NÃO VOU DEIXAR MARRIE AQUI! ELA FOI BALEADA!

- Bonitão, - os olhos de Marrie estavam vermelhos. – você precisa ir embora. Você precisa se esconder até chegar a hora do seu julgamento, você precisa se esconder... Eu vou encontrar você depois que sair daqui.

- É, Paul, assim que ela sair deste hospital a levaremos para onde você for ficar. – disse meu pai, em tom animador. – Agora vamos.

Eu não sabia o que fazer além de chorar naquele momento. Marrie já estava sobre a maca, sendo levada para a sala de cirurgia a qual eu não poderia entrar e acompanhar, e então ela estaria sozinha nas mãos de David. Eu também não sabia do que ele era capaz de fazer com ela, muito menos o que sucederia nós próximos dias. Eu só conseguia chorar.

E covardemente, chorando, coloquei os óculos escuros de meu pai, cobri a cabeça com um boné que ele trouxera, e saí pelos fundos do hospital para fugir. Mais uma vez.





quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

PAUL E MARRIE - Cap. 18: "PROTEGIDA POR UM ANJO"

(FOTO: http://www.flickr.com/photos/theworldofgrimcoda/4405140622/sizes/z/in/photostream/)

Marrie tentou fingir na manhã seguinte que nada estava acontecendo, mas era inegável o fato de que ela não estava bem.

Fazia aproximadamente 39 graus naquela manhã, um calor impressionante, jamais acontecido em nossa cidade. Era como se desde a chegada de “Ele”, o tempo passasse a correr de uma maneira diferente. Era como se o próprio tempo também estivesse se defendendo de sua chegada.

E mesmo com o calor, pela primeira vez Marrie saiu de casa sem usar um de seus vestidos. Vestiu uma calça jeans, tênis e uma blusa de manga comprida. Eu sabia que ela estava tentando cobrir suas cicatrizes, eu sabia que Marrie estava aterrorizada com a ideia de que podia ser conhecida por alguém. Tentei tranquiliza-la:

- Meu amor, você não precisa fazer isso. Ninguém vai encontrar você. Nós nem sabemos se este boato é verdadeiro, e se ele diz respeito a você.

- Você nunca me chamou de “meu amor”, bonitão. – os cabelos de Marrie brilhavam com o reflexo do Sol.

- É, talvez eu precise demonstrar mais meu amor por você. Eu nunca provei a você o quanto o meu amor é verdadeiro.

- Bonitão, - Marrie segurou meu rosto com as suas mãos. – quando eu disse que o perdoava, eu o disse de coração. Pare de se culpar por aquele dia. Já passou. Esqueça David e tudo o que ele já nos causou. Você mesmo disse: agora somos um só.

Fomos para o nosso trabalho juntos e em silêncio, e enquanto caminhávamos o nosso pequeno percurso, os gritos de David e de Marrie voltaram a martelar o meu cérebro. Passara-se mais de um ano e eu não conseguia tirar aquela cena de minha cabeça. Eu não conseguia esquecer o dia em que não provei o meu amor por Marrie.

No hospital, só se falava no “Ele”. No seu retorno, no que a cidade viria a se transformar, no perigo que ele próprio estava correndo, já que saíra da cidade porque estava jurado de morte, e alguns outros tópicos que não consegui ouvir. Não conseguia e nem queria prestar atenção neste tipo de conversa, contudo o lugar de meu cérebro onde antes estava a voz de Marrie e de David me perturbando, agora estava a foto do jornal mostrando a beleza inigualável do homem que tirou o útero e estragou a vida de minha mulher.

Não demorou muito, e logo já havia esquecido-me de toda a minha manhã, enquanto operava um apêndice inflamado de uma emergência que chegara logo cedo. Dentro da sala de cirurgia não existia medo, insegurança, problemas. Ali eu era apenas o “Doutor-Anjo”, o médico cujas mãos jamais tremiam.

E antes que pudesse terminar de tirar as luvas, após essa cirurgia habitual, escutei nos autos-faltantes:

- Atenção, “Doutor-Anjo”, atenção: paciente baleado com grave risco de morte na sala 02. Paciente gravemente ferido na sala dois.

Corri a passos largos até chegar à sala 02, que era a poucos metros de onde estava. Em poucos segundos as enfermeiras me vestiam com a roupa, touca, luvas, e instantaneamente já estava pronto para entrar em ação de novo. E enquanto terminava de amarrar a máscara, aproximei-me da cama.

E por coincidência ou não do destino, se é algum desses dois malditos existem, quem estava deitado ali era justamente ele. “Ele”. Sim, meu caro leitor, “ele” chegara gravemente ferido no hospital, pois fora baleado horas atrás, e não conseguira achar nenhum médico que o atendesse de uma forma ilegal, assim como uma vez eu fizera com Mr. Richard. Ele demorara a pedir socorro médico, pois sabia que dali sairia preso. Ou morto.

Imediatamente minhas mãos começaram a tremer e todos na sala de cirurgia perceberam o meu desequilíbrio.

- “Doutor-Anjo”,...

- Este h-homem, este homem é o responsável pelas cicatrizes de Marrie. – as lágrimas escorriam sem parar e as lentes dos meus óculos embaçaram. “Ele” voltou a cabeça para mim, e mesmo agonizando disse:

- Não interessa quem eu sou, doutor. Você não é juiz para julgar meus atos, muito menos Deus. Você tem que tirar essa porra de bala dentro de mim. Se você não tirar, você é um homem morto. Anda logo.

A raiva me consumiu. Retirei com brutalidade as luvas, a touca, e toda a roupa de higiene médica que era obrigado a usar. Eu suava muito e sentia calafrios ao mesmo tempo, como se estivesse com febre alta. Todavia, a única febre que sentia ali, naquele minuto, era de ódio.

- “Doutor-Anjo”, pelo amor de Deus, acalme-se! É melhor... – disse uma das enfermeiras, nem sequer me lembro de quem.

- É melhor nada. É melhor a gente sair daqui. O assunto tem que ser resolvido entre o “Doutor-Anjo” e “Ele”. Nós devemos deixa-los a sós. – disse Susan, a médica anestesista.

- Susan, você está louca? Precisamos operar este homem!

- Não, nós precisamos ficar nesta sala enquanto o DR. PAUL OPERA ESTE HOMEM! ELE É O ANJO AQUI... ELE PODE NÃO SER DEUS, MAS ELE É UM ANJO! E SE ELE ACHAR QUE ESTE HOMEM DEVE MORRER, EU VOU FICAR AQUI DENTRO E VOU APOIA-LO. ELE DESTRUIU A VIDA DE MARRIE. – berrava Dra. Susan.

De repente, todos ficaram agitados na sala, menos eu. Estava paralisado, tremendo dos pés a cabeça de ódio, e só escutava os gritos dele agonizando e o barulho do ventilador da sala. Muita coisa começou a passar pela minha cabeça: a promessa que fizera de proteger Marrie, o dia em que David tentou estupra-la, meus pais me olhando enquanto saía de casa, a sensação que era passar a língua por cima das cicatrizes de Marrie enquanto fazia amor com ela, a ausência de útero no seu corpo.

E em meio aos meus devaneios, não percebi que todos que estavam na sala, sem exceção, não saíram dali. Mas viraram-se de costas para o paciente e para mim. A decisão da vida dele agora estava em minhas mãos.

Era a hora de decidir quem eu queria ser: “Doutor-Anjo” ou o Paul de Marrie. Infelizmente, naquela altura do campeonato, eu não tinha compatibilidade para aquelas duas posições. Ou era uma, ou era a outra.

E confesso a você, meu caro leitor, não foi fácil deixar as minhas asas de lado, mas eu as deixei. Eu deixei as minhas asas de lado por Marrie.

Peguei o bisturi com as mãos ainda sem luvas, e disse a todos os presentes na sala:

- Eis o que vai acontecer agora: eu vou abrir o paciente, eu vou tirar a bala deste paciente, só que por um infortúnio de Deus, ou de um anjo de Deus, olha que ironia, meu caro “ele” – virei-me para um paciente. – sua vida caiu nas mãos de um anjo que resolveu se aposentar. Mas como eu estava dizendo e como irá para o nosso prontuário, este pobre paciente não irá resistir à cirurgia.

Todos continuaram de costas para nós dois sem fazer qualquer movimento. Entendi isso como um “sim” e comecei abrir “Ele” sem nenhuma anestesia. Eu queria que ele sentisse toda a dor que ele fez Marrie sentir.

E após abri-lo com precisão, enfiei a minha mão dentro de suas entranhas até que o matei antes que achasse a bala que o havia trazido até ali. Ele gritava com força, no intuito de receber ajuda, porém sem sucesso algum. Já havia visto muitas pessoas morrerem na minha frente, nenhuma delas sem anestesia. Mas garanto a você, meu leitor, que aquela foi a única morte que me fez sentir mais forte do que eu já parecia ser. Eu acabara de matar o homem que destruíra Marrie. Literalmente com as minhas próprias mãos.

Tirei a mão de suas entranhas, segurando a bala, e o fechei, como se tivesse feito o procedimento corretamente. Assim que “ele” parou de gritar, todos voltaram às suas posições, como se estivessem participado de uma cirurgia ética. As cirurgias do “Doutor-Anjo”.

Saí da sala de cirurgia sem falar nada, e quando cheguei ao banheiro, deparei-me com a minha imagem no espelho: estava coberto de sangue. Por toda a roupa, pelos braços, na cara, e principalmente nas mãos. Eu fedia sangue também. Fedia o sangue dele. E só então eu me dei conta de que acabar de cometer um homicídio e que nada mais nesse mundo poderia trazer a vida daquele rapaz de volta.

Pensei no que Marrie acharia quando eu lhe contasse o que fizera. Sim, porque eu não iria lhe esconder a verdade. Eu iria contar tudo para Marrie, porque ela iria me entender. E me perdoar. Era o que Marrie fazia sempre.

Sem raciocinar direito, saí do banheiro, coberto de sangue, e fui em direção à cafeteria de Sr. Brian. Na porta do hospital eu me esbarrei com David. Ele ficou apavorado ao ver minha situação.

- PAUL!!!! VOCÊ ESTÁ LOUCO? O HOSPITAL INTEIRO OUVIU OS GRITOS DAQUELE HOMEM! VOCÊ TEM NOÇÃO DO QUE ACABOU DE FAZER?? – ele me sacudia, e no entanto eu era incapaz de responder-lhe qualquer coisa. Sentia-me zonzo.

- Paul, eu amo você, mas se você não largar desta piranha hoje, eu vou mandar abrir aquele corpo de novo e vou denunciar você ao Conselho Federal de Medicina. Você está passando dos limites.

- Denuncia-me então, Dr. David. Porque eu acabei de matar o maior monstro que esta cidade já teve. Eu quero ver quem vai me julgar culpado. –empurrei-o e saí do hospital.

Antes que entrasse na cafeteria, Marrie já estava saindo pela porta, desesperada ao ver minha aparência:

- Sr. Paul... o que foi...

- Marrie, eu acabei de matar “ele”.

- Você o quê?!?

- Eu matei o “ele”, Marrie. – minhas pupilas estavam dilatadas. – Ele chegou para ser operado, e eu não o operei. Eu matei ele. Eu matei ele. Eu...

Quando voltei meu olhar para Marrie, vi que em seus olhos não havia uma expressão de alívio. Havia uma expressão de horror, de medo de mim em seu rosto. Marrie começou a chorar.

- Como você pôde fazer isso, Paul? Você tem noção do que fez? Você matou “ele”! – Marrie já estava aos prantos. – Você estragou tudo, Paul. A nossa vida acabou.

Tentei me aproximar de Marrie, mas em vão. Ela saiu correndo e em poucos segundos a perdi de vista. Não imaginava que tudo iria se suceder desta na maneira.

Na minha ainda egoísta visão, eu agira como um verdadeiro herói, que lhe livrara Marrie do grande vilão da história. Então por que ela agira daquela maneira? Para onde ela teria ido àquela hora do dia?

Saí desnorteado e aos prantos pela rua até chegar a meu apartamento. O que eu acabara de fazer? Como Marrie tinha coragem de me deixar sozinho em um momento desses? Será que David realmente me denunciaria ao Conselho Federal de Medicina?

A água do chuveiro escorria pelo meu corpo enquanto eu tentava pensar em algo de bom que poderia acontecer no meio daquilo tudo. Contudo, a cada pensamento que tinha, as coisas só iam ficando piores a meu ver. Eu era um cara fodido.

Sentei no sofá da sala, que ainda estava cheirando desinfetante em excesso por causa da urina de Marrie, e esperei por ela durante a tarde toda. E a noite também. Senti-me a pessoa mais sozinha da face da Terra. Depois de um ano e quatro meses morando junto com Marrie, eu não sabia mais como era contemplar a sala daquele apartamento sem ela tagarelando próxima a mim. Eu tinha plena certeza que ela jamais voltaria. No fundo, Marrie ainda amava o “ele”, e não queria que ele morresse.

Conformado com a minha solidão, e exausto emocionalmente com tudo o que acontecera, fui para o nosso quarto, e adormeci em questão de segundos, assim que deitei na cama.

Sonhei com julgamentos, com acusações, e principalmente com o cheiro de sangue que ficara na minha roupa. Sonhei também com o calor das entranhas dele, com o olhar dele me implorando misericórdia, e no sonho tentava salvá-lo, fazer de tudo, mas meus braços não me obedeciam. Minha mente queria sua vida, entretanto o corpo movimentava para fazê-lo morrer.

Acordei assustado com o pesadelo que tivera, e que tinha certeza que me atormentaria dali para frente.

No entanto, quando virei para o lado, Marrie estava dormindo, completamente nua, o cabelo todo jogado para o lado, deixando suas costas a mostra. Ali, onde havia inúmeras cicatrizes, agora havia também uma tatuagem. Nela estava escrito: “Protegida por um Anjo”.

Lágrimas voltaram a escorrer pelos meus olhos, desta vez não de peso na consciência. Era de alívio por saber que não importasse o que acontecesse de ali em diante, nós dois enfrentaríamos juntos.


sábado, 8 de fevereiro de 2014

PAUL E MARRIE - Cap. 17: A NOSSA CASA

(FOTO: http://www.flickr.com/photos/62693815@N03/6280553392/sizes/z/in/photostream/)

E eu nunca tivera um segundo de arrependimento desde o dia em que decidira sair de casa para morar com Marrie.

Perdera completamente o contato com os meus pais, e tive de pedir demissão na Universidade onde trabalhava para evitar maiores conflitos com David. Mas nunca houve um segundo de arrependimento em nada do que fizera desde que deixei a casa de meus pais.

Doara todas as minhas roupas de cama, pois não queria mais nada que me lembrasse de David, e comprei um sofá maior para a sala. Precisávamos de um sofá que coubesse duas pessoas deitadas. E por ali passamos quatrocentas noites assistindo televisão antes de irmos dormir. Durante todos estes quatrocentos dias juntos, nunca faltou música e flores no meu lar.

A nossa rotina era assim: trabalho de dia, à tarde, às vezes à noite também. Marrie sempre me entendia. E sempre me levava café preto no meio da madrugada quando eu estava de plantão no hospital. Sem açúcar, e com um tablete de chocolate derretido na xícara. Era a sua maneira de me dizer “boa noite”.

E não demorou muito para que conquistasse todos os médicos. O movimento na cafeteria de Sr. Brian, após a reforma, triplicou e todos sempre esperavam por algum prato novo que Marrie lançaria ao final de cada mês. Todos os pratos tinham nomes de flores. E ninguém parecia se importar com a feminilidade exaltada de Marrie. Era como se ambas se completassem.

Fiz duas viagens com Marrie: uma para a praia, outra para a neve. Queria leva-la para conhecer o mundo inteiro, e sentia que teria a vida inteira para completar este meu desejo.

É engraçado como nossa perspectiva muda quando amamos e somos amados ao mesmo tempo. Neste um ano e quase quatro meses morando juntos, vivemos o que se chama por aí de “lua de mel”. Nunca houve brigas, discussões sim, mas brigas nunca! Sempre o amor prevalecia, e eu fingia não me importar com as cantadas que Marrie começou a receber com o tempo na cafeteria de Sr. Brian. Tinha orgulho dela.

E como estava falando, ou melhor, escrevendo, a nossa perspectiva muda. Cheguei a pensar que nosso amor tornara-se inabalável, eterno, como se nada mais no mundo fosse capaz de nos separar.
Eu obviamente estava agindo como um iniciante do amor. Como um adolescente que se envolve com uma linda mulher mais velha, que de tão perfeita parece nunca ter tido um passado remoto, distante, e naqueles quatrocentos dias agi como um adolescente que acredita que sua mulher amada veio a este mundo apenas para amá-lo.

Todavia, apesar de Marrie ser anos mais nova que eu, era inegável que possuía um passado complicado.

E apesar de achar que amava Marrie incondicionalmente naquela época, meu caro leitor, infelizmente eu não conseguia tirar da cabeça as palavras de meu pai. As palavras que diziam que uma hora ou outra, minha carreira seria destruída por aquela pequena mulher. As palavras que também diziam que alguém poderia reconhecê-la.

Marrie não chegava a ter 1,70m de altura. Era pequena demais aos meus olhos para poder destruir a minha carreira. Ou a carreira de qualquer pessoa que a cercasse. Mas o medo me perseguiu por todos esses quatrocentos dias. O medo de que alguém descobrisse que o grande amor da minha vida era uma prostituta.

Ficava imaginando o que faria na hora em que todos do hospital descobrissem a verdadeira origem de Marrie. Se eu negaria o fato, se assumiria que era verdade, ou se fingiria que não sabia de nada e a deixasse para sempre. É, meu caro leitor, não sinto orgulho de escrever isto para você, mas eu era assim. Eu era um homem vendado a beira de um precipício, que insistia em não retirar a tal venda para não ser obrigado a enxergar que poderia cair a qualquer momento.

E foi então que o sábio destino obrigou-me a tirar esta venda e enxergar mais além: o problema de Marrie começara muito antes de sua prostituição. Eu estava me esquecendo do “ele”. Aquele que havia feito as cicatrizes em Marrie.

Estávamos deitados no sofá, Marrie entre as minhas pernas lendo o jornal de nossa cidade, e eu, por cima de sua cabeça, contemplava a visão que tinha da cidade pela sacada de nosso apartamento. Seria uma tarde comum de domingo, mas não foi.

De repente, senti um líquido quente se espalhar pelo sofá e por entre as minhas pernas. A princípio, pensei que pudesse ser algo que Marrie tivesse derramado no sofá, até que percebi que sua expressão estava completamente alterada: em choque, com as mãos trêmulas, as lágrimas escorriam com pressa pelo rosto da minha pequena mulher. Ela havia urinado no nosso sofá.

- Marrie, você está se sentindo bem? – eu sabia que Marrie não estava se sentindo bem, contudo percebi que não poderia ser direto naquela hora. Algo de muito sério havia acontecido.

E sem me responder, como se não tivesse ouvido qualquer palavra que saiu de minha boca, levantou-se bruscamente do sofá e foi até a cozinha buscar um pano com desinfetante.

- Marrie... – tentei mais uma vez, enquanto cercava-lhe, impedindo que passasse da cozinha para a sala novamente sem me responder primeiro.

- Paul, “ele” voltou... – as lágrimas não paravam de escorrer, e suas mãos tremiam tanto que Marrie deixou o pano e o desinfetante caírem no chão. E não demorou mais que um segundo para que ela também caísse aos prantos no chão.

Num primeiro momento, não consegui entender a frase de Marrie. Então voltei meu olhar para o sofá e vi que no jornal havia a foto de um homem estampado com a seguinte manchete: “APÓS 2 ANOS FORA DA CIDADE, “ELE” RESOLVE VOLTAR A ATERRORIZAR”.

Não consegui me ajoelhar no chão e acudir os prantos de Marrie. O espanto que sentira naquela hora falara mais alto, e eu precisava ler aquela notícia, mesmo já sabendo do que se trataria.

“Ele” não era apenas uma forma que Marrie e Mr. Richard usavam para se referir ao homem que a sequestrara machucara no começo de sua vida. “Ele” era o nome que o próprio monstro escolhera usar. Na foto preto e branco do jornal, provavelmente vinda de arquivos policiais, lá estava ele, o homem que nunca pensei em conhecer.

E ele era completamente diferente do que um dia eu havia imaginado: era alto, forte, do queixo largo e olhar marcante. Se não fosse o fato de ele ser um sociopata, qualquer um daria razão para que ele fosse o primeiro amor de Marrie. Em quesitos físicos, “ele” ganhava de mim sem qualquer esforço.

Na bochecha, havia uma profunda cicatriz, muito parecida com as do corpo de Marrie. Era por isso que ele fizera tudo aquilo com ela, era a única explicação. “Ele” com certeza sofrera este grande trauma na infância e não soubera lidar com tudo depois. Não que eu estivesse justificando a sua atitude, contudo, ali, diante da foto daquele homem, eu precisava pensar em alguma coisa para me distrair da ideia de tentar imaginar tudo o que Marrie vivera enquanto era sua posse.

Estava em pé, pasmo, com os braços abertos segurando o jornal e olhando para a foto dele. Após alguns segundos, decidi correr os olhos pela notícia.

Nada concreto por enquanto, dizia o jornal, mas estava claro que “ele” estava de volta. A periferia da cidade, e ali se incluíra o bordel de Mr. Richard, voltara a adotar o toque de recolher. “Ele” comandava quando era a hora de dormir, e quando era a hora de acordar.

E no meio de um dos depoimentos colhidos, havia um boato de que ele voltara para “acertar contas que não foram resolvidas no passado”. Se isso se referia diretamente a Marrie ou não, eu não poderia saber. Mas pela primeira vez nestes quatrocentos dias, eu parei de me importar com a minha reputação. Eu precisava proteger Marrie.

Deixei o jornal no chão e me aproximei dela com calma. Abracei-a  com força, beijei os seus cabelos, cada vez maiores e mais ruivos e lhe disse:

- Marrie, agora nós somos dois. Ninguém vai atrapalhar a nossa felicidade. Eu prometo que eu vou tirar este homem da sua vida. Quem cuida de você agora sou eu.

Eu não tinha ideia da força e nem do que aquela promessa me faria fazer. Entretanto, pela primeira vez em vários anos, eu não queria mais ser o “Doutor-Anjo”. Só queria ser o anjo que salvasse a vida de Marrie.





quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

PAUL E MARRIE - Cap. 16: A CASA DE MEUS PAIS

(FOTO: http://www.flickr.com/photos/milateniz/6750087569/sizes/z/in/photostream/)


Foi difícil conter as lágrimas nos olhos enquanto pagava o xampu de Marrie. Eu tinha plena certeza naquele momento de que não merecia o amor daquela pequena mulher. E qualquer um que passasse por ali e soubesse de nossa situação, que soubesse que Marrie só queria um xampu de aniversário, teria certeza de que eu não merecia o amor dela.

Meus olhos ardiam, e eu não queria chorar, não no meio da farmácia, e muito menos deixar que Marrie descobrisse que eu não merecia o seu amor. Abaixei a cabeça, na tentativa de esconder o meu futuro choro, mas não consegui deixar-me passar despercebido por Marrie.

- O que foi, bonitão? Quer ir para onde agora? – perguntou-me, enquanto delicadamente levantava meu queixo com uma de suas mãos. As mãos de Marrie estavam perfumadas.

- Quero leva-la para a casa de meus pais, Marrie. Eles precisam conhecer você.

- Isto vai lhe causar um enorme problema, bonitão. – apesar do espanto, Marrie não podia deixar esconder o riso. Ela queria conhecê-los.

- Vai dar certo, pequena. Vamos. – obviamente eu não sabia se iria dar certo ou não, mas quis transparecer segurança. Agarrei Marrie pela cintura e saímos como um casal feliz da farmácia.

Não conversei muito durante o caminho até a casa de meus pais, e quanto mais próximo ficávamos de nosso destino, mais nervoso eu começava a me sentir. Era claro que eles não gostariam de Marrie, pois já sabiam que ela era uma prostituta, ou que fora uma, não havia pensado bem sobre o que Marrie era naquela altura do campeonato. Mas ao mesmo tempo que temia a reação deles, sabiam que eram tradicionais e educados demais para maltratarem Marrie. Eles com certeza manteriam a pose.

O que jamais esperava era quando entrasse em minha casa, David estivesse na sala de estar conversando com eles.

- Eu não disse?! – exclamou David, espantado. – Eu falei que uma hora ou outra ele traria esta vaca para dentro da casa de vocês.

- Cala a boca, David! Eu já estou cansado de você na minha vida! ACABOU! ENTENDA! ACABOU! – gritei, enquanto segurava a mão de Marrie com força, na intenção de protegê-la.

- Por favor, Paul, coloque esta mulher para fora de casa. Nosso lar não recebe prostitutas. – pediu-me minha mãe, em tom severo.

- O QUÊ?! – exclamei, gritando. – Eu não vou levar Marrie a lugar algum. Esta é a minha casa, e não a de David.

- Paul, será que você não percebe, meu filho? Uma hora este relacionamento não vai dar certo, e esta mulher vai expor você. Você que é um médico brilhante! Olhe para ela, filho, cheia de cicatrizes... logo alguém irá reconhecê-la, alguém que já frequentou o bordel.

- Vocês estão todos hipnotizados por David! Ele é o monstro aqui, e não a Marrie.

- Independente de quem seja o monstro nesta história, Paul, eu não quero esta mulher dentro desta casa. – continuou minha mãe, cada vez mais séria.

- Esta casa também é minha, mãe.

- Você está muito enganado, Paul. Esta casa só será sua no dia em que eu e seu pai morrermos. Enquanto isso esta casa é NOSSA, - gritava minha mãe, apontando o dedo para meu pai e ela - e só entrará aqui quem NÓS DOIS permitirmos. Portanto, retire esta mulher daqui.

Marrie tentava se desvencilhar da minha mão, penso eu que estava tentando ir embora. Já estava chorando muito, sem dizer nada. Meu coração doía, e enfim as lágrimas que segurei enquanto estava dentro da farmácia começaram a escorrer pelos meus olhos.

- Tudo bem, mãe. Marrie nunca mais colocará os pés nesta casa. Mas eu vou embora junto com ela.

E quando paro para me lembrar do que aconteceu posteriormente, tudo me aparece em uma sequência em câmera lenta:

Quando escutei o que dissera, que estava saindo de casa para ficar com Marrie, um sentimento enorme de liberdade invadiu meu peito, e transbordou por todo meu ser. Eu não precisava de mais nada. De repente me sentira completo. Completo porque estava de mãos dadas com a mulher que eu amava.

E com a mesma intensidade que este sentimento brotou em mim, eu o coloquei para fora. Urrei com toda a minha força enquanto virava a mesa repleta de enfeites de minha mãe pelos ares. Eu precisava extravasar.

E quando David tentou se aproximar de mim, acertei-lhe em cheio um murro no nariz, que fez com que o sangue jorrasse pelo chão e pela minha camisa. A sensação do sangue quente dele encostando em meu rosto era sublime. Naquele momento eu amava odiar aquele babaca.

Eu chorava igual um louco enquanto andava até meu quarto. Um filme de toda a minha vida passava pela minha cabeça. Enquanto arrancava com raiva todas as minhas roupas do armário, lembrei-me de todas as vezes que fui colocado de castigo porque não me comportara como o devido, de todas as gozações que recebera durante a época de escola e faculdade, e, principalmente, de todas as vezes que permanecera calado, quando o que eu mais queria era dizer “chega”, “eu não suporto mais”, “deixe-me em paz”.

Caí de joelhos no chão, aos prantos, pois sabia que de agora em diante teria um novo futuro pela frente. Sabia que David faria de tudo para atrapalhar a minha carreira, para denegrir a imagem de Marrie, e que nada seria fácil sem o apoio da família influente de meus pais. No fundo, naquele momento eu não tinha certeza se valeria a pena ou não todos os sacrifícios que estava prestes a fazer. Contudo, não conseguia fazer algo diferente que não fosse deixar aquela casa e ir morar com Marrie.

Levantei com dores no corpo, e em segundos enchi uma mala de roupas e outra de sapatos, sem me preocupar em dobrá-las. Saí chorando do quarto e não me despedi de meus pais quando passei pela sala.

Antes que chegássemos a porta, Marrie virou-se para meu pai e disse com uma voz firme, porém baixa:

- Senhor, creio houve um engano: ninguém jamais me reconheceria nas ruas. Ninguém perde o seu tempo reparando em uma mulher cheia de cicatrizes. Eu, pelo contrário, por nunca ter olhos me compenetrando, sempre observei atentamente tudo o que acontecia ao meu redor. Digo sem medo que ninguém me reconheceria fora do bordel, porque o senhor não me reconheceu. Já o vi várias vezes por lá, sendo muito bem acompanhado por Bianca. Não entendo qual é o seu critério de impedir que uma prostituta entre em sua casa e de se permitir entrar em uma casa de várias prostitutas. Passar bem.

Ouvimos os gritos de minha mãe quando saímos de casa às pressas. Não havia som além de choro no carro enquanto voltávamos para o meu apartamento.

Ao chegarmos, corri para o banheiro e continuei chorando, até que meu corpo não tinha mais forças e escorreguei, caindo sentado no chão. Marrie chegou, nua, e sentou-se ao meu lado.

- Venha, Sr. Paul, você precisa de um banho.

- Marrie, eu...

- Paul, - era a primeira vez que Marrie me chamava assim. – você largou a sua vida por mim. Deixe-me lhe dar um banho, pois daqui para frente quem cuidará de você sou eu.

- Eu não queria que você tivesse sido tratada daquela maneira...

- Eu não me importo com o que eu ouvi de seus pais, muito menos de David. Eu só me importo com as suas lágrimas e ver você sentado no chão.

- Marrie...

- Venha, bonitão. Vou estrear o xampu com você. Eu não disse que só o usaria em ocasiões especiais? Pois bem, hoje será a primeira delas: o dia em que você quebrou as suas correntes. Permita-se ser, daqui para frente.

E não precisa ficar se perguntando, meu caro leitor. Eu fui para a banheira. Era o primeiro dia em que me permitira ser o Paul de Marrie.