segunda-feira, 11 de abril de 2016

(A MORTÍFERA) Capítulo 8: Duvide de seu coração

(FONTE: http://cerebromasculino.com/wp-content/uploads/2012/05/Lagrimas.jpg)



Gosto de deixar tudo bem explicado para vocês, meus caros, porque se eu simplesmente contasse a minha história sem os adendos que transcrevo aqui, tenho certeza que muitos duvidariam de mim, ou de tudo o que me aconteceu.

Mais do que duvidar, as pessoas simplesmente não gostariam de cogitar a possibilidade de que aquilo que lhes conto fora verdade. Ninguém quer acreditar na maldade, no egocentrismo, na fúria interna que existe dentro do outro.

O ser humano é uma obra tão engraçada, que para se aparentar bom, para se afirmar e viver uma vida que aparentemente seja digna e harmoniosa, fecha os olhos para tudo que não condizer com aquilo que ele deseja. E posso afirmar-lhes com toda certeza de que o ser humano se esconde da verdade.

Não me olhe com cara feia, meu leitor, pois sei que você também é assim. Marco também foi assim.

Mesmo me conhecendo há pouco tempo, mesmo que eu não tivesse lhe dado qualquer explicação do que estava acontecendo, ele levou Delegado Phillip para um hotel, e o escondeu ali.

Quando voltou para me encontrar, a adrenalina gritava em seu corpo: estava suado, com as pupilas dilatadas, e com o maxilar travado. Marco sabia que havia algo de muito sério escondido ali, mas seu corpo e mente não queriam ouvir a verdade.

E é aí que lhes confirmo o que falei. O ser humano se esconde da verdade, pois uma vida perfeita é o nosso anseio, e, ter de sair deste desejo realizado é uma frustração que não queremos ter em nossas vidas.

Marco não queria desconstruir a imagem que ele havia criado ao meu respeito. Ele não queria estar enganado sobre minha pessoa. Não ele, soldado do exército, filho de traficante, já escolado pela vida, pela dor, pelo susto. Pela falta da perna.

Marco era esperto demais para fingir que não sabia que eu fora a culpada pelo desaparecimento de Delegado Phillip. Ele conhecera e acompanhara a história, assim como toda a cidade.

Além disso, Marco tinha algo além do que os demais habitantes da cidade tinham. Marco farejava o cheiro de sangue, e Marco sabia onde estava um predador. Afinal de contas, ele nunca falhara em suas operações.

E ali, diante de minha presença, o temido oficial, o temido filho de criminoso, o milagre nascido de um mundo sem esperanças, havia caído no pior erro que poderia ter cometido em sua vida. Pois não há prisão pior na vida que se apaixonar por quem tem princípios contrários aos seus.

Nesta prisão não há grades, nem cadeados. É um lugar onde você nasce e vive livre por natureza, contudo, por vontade própria, decide se aprisionar.

- Marina, ... – olhos de Marco estavam cheios d’água.

- Marco, peço que você se sente e respire fundo, pois o que eu tenho para lhe contar não é nada fácil. E nem bom.

É claro que eu não contei a verdade para Marco. Sim, eu inventei uma história. Alias, nem posso dizer que inventei uma história, pois tudo que ali contei era verdade.

Contei do abuso que sofrera quando criança, da morte de minha mãe e do posterior descontrole do meu pai, que acabou resultando em abuso sexual. 

Eu conseguira através de poucos gestos, muitas lágrimas, e com palavras suficientes transformar toda a minha história em um desastre. E para falar a verdade, eu não estava mentindo em nada do que lhe dizia, a não ser pelo fato de que eu fora a causadora de tudo aquilo que me acontecera.

Sim, também não posso negar que meu pai era uma pessoa doente, e que muitos o considerariam um monstro, e foi exatamente esta a imagem que transmiti a Marco. Que um monstro, desde a minha infância, me obrigara a fazer coisas que eu não queria, e uma delas foi aprisionar Delegado Phillip em nosso porão.

Sei que ouvindo assim, ou melhor, lendo assim fica difícil de acreditar que alguém cairia fácil naquilo que dizia. Mas isso porque antes de mais nada, apresentei-me com a alma limpa para vocês. Sem truques, sem disfarces, apenas com a pele humana e a mente envenenada pelo que alguém consideram uma patologia, e que tantos outros apenas resumem em “maldade”.

O fato era que Marco não conseguia meu verdadeiro eu. Mais que isso, Marco não queria saber quem de fato eu era. O que ele queria fora exatamente aquilo que ele recebera: desculpas esfarrapadas para acalmar seu coração. Para continuar ao lado de quem o estava fazendo feliz. Pobre Marco.
E aos prantos, tremendo terminei minha história:

- Eu não sabia quando teria coragem, Marco, eu não sabia! Eu estava decidida a por um fim em minha vida, pois não consigo mais viver sob tamanha tortura. Eu sei que o melhor para todos seria que eu me matasse, pois só assim me veria livre das mãos de meu pai, só assim não haveria como ele ameaçar mais meus entes queridos, meus pacientes, mas aí...

Marco já sabia a resposta, contudo, continuou calado, pois queria ouvir de mim:

- ... aí você apareceu, Marco. Do nada. Apareceu na minha frente e disse que eu era a responsável pelos seus sonhos estarem se realizando. Eu, logo eu, que tive que arrancar-lhe um membro tão essencial do corpo, eu que o mutilei, e mesmo que por motivos de saúde, eu fui a responsável pelo fim de sua perna.

- Marina, ... – antes que Marco continuasse, calei-o, delicadamente, com um de meus dedos.

- Aí você chegou, e de repente parecia que eu não havia me transformado em um monstro exatamente como meu pai é. Eu entendi, graças a você, que eu sou apenas um fruto de uma criação amaldiçoada, de tortura e humilhação. Você, ainda mais de quem você é filho, e tudo aquilo que você se transformou, conseguiu me mostrar que eu também posso ser alguém melhor. Você me deu coragem para dar um basta em tudo isso que está acontecendo comigo. Por favor, Marco, não me abandone agora. Eu preciso muito de você.

Marco me olhava nos olhos como quem queria disfarçar o horror, mas não conseguia. Demorou alguns segundos, até que ele, sem desviar o olhar, pegasse minhas duas mãos e as juntasse em seu peito, antes de se declarar:

- Eu amo você, Marina. Não vou abandonar você, e nós vamos vencer isso  juntos. Nem que eu precise recorrer ao meu pai para isso. Não vou deixar que este psicopata encoste um dedo que seja em você, nunca mais!

Beijamos-nos. Um beijo voraz, babado, mordido, quente. Daqueles que se quer devorar o outro, engoli-lo, tê-lo para dentro de si.

Confesso que eu estava enojada. Amor romântico era algo que me dava arrepios. Entretanto, não me incomodava Marco me beijar daquela maneira. Era uma espécie de nojo misturada com prazer. Algo que ainda não experimentara, e que não sabia explicar muito bem. Mais tarde faria uma reflexão a respeito, mas não antes de resolver os meus reais problemas.

Marco deitou minha cabeça em seu colo, e acarinhou meus cabelos. Sem querer, esbafori um riso, que imediatamente o disfarcei com um choro contido. Marco me acolheu em seus braços, e disse:

- Peça para mim o que você quiser, e eu o farei, Marina. Somos, além de um casal, aliados nesta batalha. O que você quiser de mim você vai ter.

- Não sei o que fazer, Marco. – as falsas lágrimas escorriam. – Acho que Phillip vai se lembrar do que aconteceu... Acho que devo me entregar para a polícia.

- Não, Marina! Você jamais sobreviveria a uma cadeia! Isso não!

- Então o que?

- Se quiser, posso dar um fim nele. Sou um Oficial, sei como fazer essas coisas.

- Não, Marco! – estava começando a sentir que as coisas funcionariam exatamente como eu gostaria. -Não quero fazer mais mal a ele, ele não merece! Ele é um pobre inocente.

Entreolhamo-nos.

- Ele é inocente, Marco.

- Eu sei.

- Ele é inocente, Marco. Mas meu pai não.


Entreolhamo-nos mais uma vez. Não havia mais nada que precisasse falar. A semente já estava lançada. Marco levantou, e sem dizer nada, saiu. Agora era só questão de esperar um tempo, e eu, Marina Shadda, assumiria o posto de meu pai.