quarta-feira, 26 de março de 2014

PAUL E MARRIE - Cap. 24: O CASAMENTO DE MARRIE

(FOTO: http://www.flickr.com/photos/46929568@N04/4474420906/sizes/m/in/photostream/)


Assim que entrei no salão de entrada pela fazenda, deixei-me levar pela euforia. Abracei meus empregados, gritava que tinha sido absolvido, que recebera uma segunda chance da sociedade, e que agora estava pronto para lutar e ter de volta o amor de minha Marrie.

A maioria dos empregados se assustara com o meu carinho e felicidade repentina, pois não era um hábito meu ser sorridente desde que chegara à fazenda. Todos eles, com exceção do menino que me levara até a cidade, pareciam se comover com a minha absolvição e sorriam para mim enquanto eu pulava de alegria.

Quando todos me deixaram a sós, lá estava ele, o empregado que me levara à cidade, em pé, esperando que eu me acalmasse para que pudesse conversar comigo:

- Sr. Paul, se me permite uma opinião...

- Claro, meu rapaz, hoje você pode falar o que quiser... nada vai tirar a minha alegria! – respondi, convidando-o com a mão para que se sentasse ao meu lado.

- É que...

- Vamos, pode falar, não precisa ter medo. Voltei a ser o “Doutor-Anjo”, só que sem licença para exercer a Medicina. – continuei brincando.

- Eu não tenho nada a ver com a vida do Sr., muito menos com essa tal de Marrie que nós fomos atrás na cidade, até porque eu nem conheço ela a fundo. Mas, quando ouvi o Sr. comentar agora que iria lutar pelo amor dela, minha consciência pediu para que eu conversasse com o Sr., pois não acho certo isso não...

- Por quê? Não tenho o direito de lutar por ela? Logo ela, que eu amo tanto?

- Olha, meu chefe, eu mal sei ler e escrever, e nunca tive vontade alguma de frequentar a escola. O que quero dizer é que não tenho estudo nenhum, e às vezes nenhum saber para lhe dizer o que vou dizer. Mas a meu ver, você TINHA o direito de lutar por ela. Tinha no sentido de não ter mais. Porque eu acho um absurdo o Sr. resolver ir agora atrás dela. Agora que ela arrumou um chapa legal, o camarada é Doutor..

- Eu também sou.

- Não, Sr. Paul. O Sr. não é doutor mais. E o Sr. nunca se noivou com Marrie. Acho injusto, depois de tudo o que ela passou, poxa, ela tirou a roupa aqui na frente de todo mundo, e o Sr. mandou ela embora. Não sei, chefe, eu posso estar muito errado, mas para mim, se você a ama de verdade, você deve deixar essa tal de Marrie casar e ser feliz.

De imediato, nada respondi. Sabia que aquele ser tinha razão.

- Até porque, Sr. Paul, o que o Sr. poderia oferecer a ela, a esta altura do campeonato? Você pode ter ser sido julgado inocente, mas ainda tem gente atrás de você. Logo, logo, você vai ter que ir embora daqui, não vai poder arrumar um emprego, vai ter que viver fugindo. E ela acabou de reformar a cafeteria, tem o próprio negócio, não sei ela merece passar o resto da vida fugindo com você. Peço desculpas se eu disse alguma coisa que te ofendeu, mas é o que eu acho.

Era o que ele achava, e foi o que eu acabei acatando como certo. Realmente, o que eu, um ex-médico com a licença cassada, fugitivo por ter matado um traficante, tinha a oferecer para Marrie? Doeu saber que eu havia perdido o jogo de vez, mas sabia que esta era a única solução: se eu amasse Marrie de verdade, eu a deixaria se casar e ser feliz.

E por mais seis meses vivi a vida que estava levando antes de ir ao Tribunal: bebendo de manhã, à tarde e à noite, lendo os livros da biblioteca de meu avô, perambulando pelos enormes cômodos do casarão, contando quantos passos dava de um lado até o outro, andando a cavalo, entre outras coisas mais.

Nestes seis meses, nenhuma notícia de Marrie e nem de meus pais. Eu passava o dia inteiro me sentindo abandonado, como se eu tivesse morrido e alguém tivesse esquecido de me avisar. Havia horas em que a minha única vontade era morrer, para ver se assim eu encontrava a paz.

E passados esses meses, estava eu, sentado na escada, à espera de Larry, meu fiel empregado, trazer cigarros da cidade para mim, quando o avistei chegando e gritando, antes mesmo que descesse da carroça:

- Sr. Paul, é hoje! É hoje, Sr. Paul! É hoje o casamento de sua Marrie!

Senti meu coração bater e parar, e um arrepio subiu pela minha nuca.

- A Igreja está sendo arrumada, flores, tapete vermelho e tudo mais! Acho que se o Sr. sair daqui agora, dá tempo de chegar e ver a cerimônia, mas o Sr. vai ter que ir de carro.

- Eu não vou assistir Marrie se casar com outro homem, Larry. Estou muito bem aqui.

- Sr. Paul, eu acho que o Sr. deveria ir sim. Nem que fosse para ver Marrie pela última vez. E desencanar, sabe, o Sr. fica aí o dia inteiro, nessa tristeza toda, acho que o Sr. deveria ir.

E fui. Fui porque realmente estava louco para ver Marrie, e porque Larry conseguiu arrumar um carro emprestado para que eu fosse até a cidade. Fazia mais de um ano que eu não dirigia, e eu corria tanto, que sentia um frio na barriga como se estivesse em uma montanha russa.  Estava vivendo um ‘trhilling’.

Ao chegar na cidade, a grande decepção: quando entrei na Igreja, esta ainda estava vazia, e como estava barbudo e usando um chapéu, mais uma vez ninguém me reconheceria. Foram longos os minutos até que os convidados começassem a chegar e até que Marrie entrasse no altar.

Vi Marrie entrar na Igreja. Nem em meus pensamentos ela conseguira ficar tão bela, tão esplêndida, tão intocavelmente perfeita como ela estava naquele vestido. Seus cabelos levemente ondulados deixaram que o véu de noiva pairasse delicadamente sobre sua testa.Mesmo estando de longe, eu poderia sentir suas mãos suarem, pedindo que alguém a ajudasse a perder aquele nervosismo, aquela ansiedade de viver o momento mais importante de sua vida. E agora era a hora de desfrutar aquele momento.

Pois aquele era seu sonho, estar ali, diante da sociedade, mostrando que era digna e católica como qualquer outra pessoa poderia ser. Mr. Richard estava a acompanhando, como um pai faria com a sua filha, e era completamente perceptível em seus olhos o orgulho que estava sentindo de Marrie.
Marrie entrou com ensaiados passos largos, suaves, como se ninguém pudesse ouvir seus pequeninos pés tocarem o tapete vermelho. Tinha em seus lábios um sorriso incrivelmente trêmulo, verdadeiro, emocionado. Carregava com força o buquê de rosas vermelhas, provavelmente colhidas por ela mesma.

Observei Marrie com lágrimas nos olhos, sem fazer qualquer esforço para tentar impedi-las de cair. Aquela mulher tão linda e tão pequena era a mulher da minha vida, era o amor que me fizera mudar o que os homens pensavam ser imutável. Cheguei tão perto de seus cabelos que consegui sentir o cheiro de seu xampu. Era o xampu que lhe dera de presente anos atrás, e que sorrindo, um dia ela me alegara que só o usaria em ocasiões especiais.

Aqueles milésimos de segundos de olhos fechados sentindo o cheiro de seu cabelo duraram horas em meu subconsciente. Até que abri os olhos e continuei observando Marrie chegar até o seu futuro marido.E fui embora. Porque não precisavam do meu amor naquele lugar.

Quando saí da Igreja, deparei-me com uma poça d’água e fiquei alguns instantes observando o meu reflexo naquela água um tanto quanto suja.


Eu tinha olhos grandes. Olhos redondos, grandes e observadores. E o que mais me perturbava era ver ali, em frente aquela Igreja, o que realmente estava acontecendo comigo. Era algo além de ver, era entender que o que me incomodava tanto não era o fato de minha carteira estar vazia, de eu não ter minha própria casa ou porque nunca mais poderia exercer a Medicina. O que me perturbava, o que me incomodava, o que confesso que me doía profundamente era encarar-me só.


Era encarar-me só ao lado de aproximadamente 450 pessoas, em uma cidade de 800 mil habitantes, em um país que pouco me importava quantas pessoas o habitavam. Porque ninguém me interessava, ninguém além daquela mulher que estava se casando ali, ao meu lado.


Ainda conseguia sentir o cheiro daquele xampu vagabundo que lhe dera de presente, no seu 23º aniversário. E poderia ter lhe dado uma pedra, um alfinete, ou até mesmo uma bomba, e teria certeza de que Marrie arrumaria alguma forma de levar consigo para o altar.


Porque Marrie me amava. Porque Marrie me amava desde o 1º dia em que me vira, em que apenas ela me vira. E marrie via-me como ninguém. Marrie enxergava todos os meus lados negros, doentios, malucos, e os amava, os idolatrava, os desejava perto dela. Marrie desde o primeiro dia sabia que eu seria o homem de sua vida. O Paul de sua vida. O seu marido, o seu amigo, o seu namorado, o seu amante, o seu colega, quando quisesse. Quando precisasse. Quando pedisse, ou melhor, assim que pedisse.


Mas a realidade não fora essa. Eu só oferecera durante os nossos poucos anos de relacionamento o meu lado negro. E mais nada. Só entreguei à minha pequena Marrie parte do meu lado obscuro para que ela amasse e se satisfizesse com ele. E assim Marrie o fez.


Entretanto, não bastava para mim ver aquela mulher ser feliz com tão pouco. Tentei dar-lhe, milhões de vezes, algo que pudesse contar sem vergonha alguma para outras pessoas, algo completamente diferente do que estava acostumada a receber. Porém, acabei fazendo de Marrie minha esposa, minha namorada, minha amiga, minha amante e minha colega nas horas em que eu a desejava, a chamava. Assim que a chamava. Fiz dela tudo, menos uma mulher amada.


Eu estraguei a vida de Marrie. Durante estes poucos anos, aos poucos, com longos intervalos de tempo, eu destruí, sem entender o porquê, o pouco de vida que restava naquela mulher desorientada, esperançosa e triste.


Não entendi o que dava errado, o motivo pelo qual não conseguia transmitir meu amor para ela, falar de amor com ela, ser amor perto dela. Cheguei à conclusão que entre nós, o amor não bastava. Que entre nós, o amor acabara tornando-se algo supérfluo, banalizado pelas nossas mentiras.

Lembrei-me também de Marrie na fazenda, indagando-me se eu realmente a amava, se eu era homem o suficiente para deixar meu orgulho de lado e amá-la de verdade. Eu, meu caro leitor, não tinha qualquer dúvida a respeito dos meus sentimentos, apenas não tinha maturidade suficiente para saber se meu orgulho era mais importante que o meu amor. Se o meu orgulho era mais importante que minha Marrie.



E hoje, no tal grande dia, eu derramara lágrimas ao vê-la entrando, usando o xampu que eu lhe dera, para casar com outro homem. Um grande médico, exatamente como eu fora há anos.


Pensei em ir até um bar, beber uísque até ficar insuportavelmente bêbado e voltar para a fazenda, onde poderia me afundar em uma eterna melancolia.


Porém, não saí do lugar. Pois aqueles olhos, aqueles mesmos grandes, redondos e observadores olhos, perceberam algo que até então eu não via antes. As minhas conclusões estavam erradas, o nosso amor era suficiente para manter-nos felizes, eu que fora cego e tolo o suficiente para enxergar as coisas da maneira como o meu orgulho e covardia queriam, da maneira que minha autossuficiência emocional pedia.


Eu não me deixei amar aquela mulher. Eu guardei todo aquele amor dentro do meu peito para que a perdesse e voltasse a ser o Paul de sempre, o Paul que sabia sorrir, mas que não sabia ser feliz.


Tinha ciência de tudo agora. Do quanto eu errara, falhara e perdera. Tinha ciência de que agora era tarde demais e que só provaria ter um real amor por Marrie se a deixasse ser feliz com o seu futuro marido. Também tinha ciência de que Paul não seria mais Paul se não tivesse Marrie ao seu lado. Tinha ciência de que um ser humano prestes a fazer 36 anos não muda do dia para a noite, e ainda tinha os meus instintos egoístas. E por estes instintos que dei meia volta e entrei na Igreja novamente.


Voltei para buscar Marrie. Entrei pelo mesmo tapete vermelho que ela entrara e com uma determinação no olhar, fui atrás de Marrie como um caçador vai atrás de sua presa.


Todos os convidados, padrinhos e madrinhas olharam e minha direção. Depois o padre, e enfim, os noivos. Marrie arregalara seus olhos de tal maneira que pensei que fosse desmaiar ali mesmo. Mas Marrie firmou-se em pé, e me disse:

- Você é um filho da puta de um egoísta, Sr. Paul! Como tem coragem de estar aqui?


- Você tem razão, Marrie... – disse, tremendo os lábios. – Eu sou um filho da puta de um egoísta, e amo você demais para deixar você se casar com outro homem. Eu dei esse xampu para que você fosse minha mulher. E eu estou aqui para que você a seja.

Marrie, como eu, tremeu os lábios, e não disse nada. Também não esperei que respondesse, peguei-a no colo e coloquei-a em meus ombros como se estivesse sequestrando-a. Fechei a cara para todos os convidados, inclusive para o noivo, e saí da Igreja com a noiva em meus braços.


E em nenhum momento pensei em desistir, porque ao ter Marrie comigo, vi que ela sorria. E aquele sorriso... era de perdão.





quarta-feira, 19 de março de 2014

PAUL E MARRIE - Cap. 23: O TRIBUNAL DO JÚRI

(FOTO: http://www.flickr.com/photos/pablo_costa/4965086018/sizes/z/in/photostream/)


O engraçado foi que aquela xícara de café teve o efeito inverso no meu corpo: assim que a terminei, caí no sono, e só acordei quando o Sol nasceu. Era o dia do meu segundo julgamento, em que seria julgado não mais pelos meus colegas de profissão, mas sim pelas pessoas que na época eu classificava como “comuns”.

Mais uma vez entrei no camburão algemado, e para a minha surpresa, a cidade toda estava ali para assistir meu julgamento. Uma aglomeração de mulheres com cartazes levantados, todos os meus colegas do hospital, e, à frente de todos, estava Mr. Richard, fumando o seu charuto, e me esperando descer do carro da polícia.

Em meio a toda aquela confusão, só depois que desci do camburão é que percebi que as mulheres que estavam a postos segurando cartazes, eram as prostitutas de Mr. Richard, e consequentemente, as amigas de Marrie. Todas estavam gritando um hino, que me fez rir antes de subir as escadas do Tribunal:

- INO! INO! INO! DOUTOR- ANJO NÃO É ASSASSINO! INO! INO! INO! DOUTOR ANJO NÃO É ASSASSINO! – todas em coro, clamando Justiça em meu nome.

Marrie, obviamente, não estava junto com elas, mas assim que entrei no salão do Tribunal do Júri, senti o cheiro de seu xampu. Lá estava ela, observando a minha entrada com muitas lágrimas nos olhos, ao lado de seu noivo.

Pude então observá-lo com calma. Assim como eu, era alto, forte, e tinha boa aparência, porém anos mais jovem, eu poderia dizer que ele tinha a idade de Marrie. Seu cabelo estava brilhando, milimetricamente penteado, sem nenhum fio fora do lugar. Enquanto caminhava ao lado dos policiais, ele me olhava de cima embaixo, como se estivesse fazendo um raio-X de quem era o ex-alguma coisa de sua atual Marrie.

Sentei, bufando, na cadeira de réu que fora posta para mim. Eu sabia que também seria condenado naquele Júri e que provavelmente meu futuro próximo seria acordar e dormir naquela cadeia imunda, e receber os cafés de Marrie. Pensei em que o seu noivo pensava a nosso respeito, se ele se sentia confortável em estar ali, no meu julgamento, ou se estava lá para se vangloriar em ver seu adversário perder a mulher que ama para sempre, ao vivo e a cores.

Fui despertado de meus pensamentos, pois o julgamento começara.
E ao contrário do que ocorrera no Conselho Federal de Medicina, lá sim foram ouvidas as testemunhas, no caso os meus colegas de hospital, e fiquei completamente incrédulo com o que foi dito ali: que eu sempre tivera um comportamento estranho, agressivo, que não era a primeira vez que falava em assassinato, e que não, que ninguém mais confiaria na minha capacidade médica e ética para exercer minha profissão.

Eu praticamente carregara no colo todos aqueles profissionais que estavam prestando depoimento. Dei aula para alguns, auxiliei alguns outros dentro do hospital, mas, para todos eles, eu sempre os tratara como amigos. E ali, naquele momento, apenas para não correrem o risco de serem acusados, inventaram mentiras sobre o que aconteceu naquele dia para se verem livres de mim. De repente, todo mundo se esqueceu que um dia eu fora o “Doutor-Anjo”.

Meus pais também estavam presentes, juntamente com a plateia, em lado oposto ao que estava Marrie. Minha mãe estava arrumada como se estivesse indo a um baile de gala, e meu pai tinha o sapato lustrado, assim como o do noivo de Marrie. Os dois estavam ali apenas para manterem as aparências e tentarem mostrar que éramos uma família tradicional e respeitada na cidade. Contudo, todos pareciam também ter se esquecido disso.

E então, chegara a minha vez de falar. Meu advogado me orientara a dizer que eu fora induzido por Marrie, que ela durante todo o tempo que moramos juntos implantara esta ideia na minha cabeça, e que no dia de realizar esta cirurgia eu estava sem dormir devido a uma crise histérica que Marrie tivera. Resumindo, eu deveria fazer com a minha pequena o que os meus colegas estavam fazendo comigo. Era para ser um “salve-se quem puder”.

Ainda algemado, tirei meus óculos do rosto antes de começar a falar:

- Ai ai... eu mal sei por onde começar. – meus olhos encheram-se de lágrimas ao ver Marrie boquiaberta me assistindo. – Mas a verdade é uma só: eu matei sim aquele homem, como já está provado pelos laudos médicos. Eu coloquei sim as minhas mãos em suas entranhas para que ele perdesse a vida. O que eu não posso dizer a vocês, jurados, é que eu sempre tive comportamento agressivo, ou que eu ameacei os meus colegas de profissão. Isso não, isso eu nunca fiz e não vou mentir aqui. Para falar a verdade, acho que seria muito melhor se eu tivesse apenas um desvio de personalidade. A minha história começa muito antes deste dia da sala de cirurgia...

Fechei os olhos para me revelar, e assim fiquei nos primeiros segundos quando disse:

- Eu, Dr. Paul Robert, também conhecido como “Doutor-Anjo”, era homossexual e tinha um relacionamento estável com o Dr. David, médico-chefe de nosso hospital. – não esperei que os gritos de espanto cessassem para que continuasse com o meu depoimento. – Sim, eu queria dizer a todos que estão presentes aqui que eu já dei e já comi o cú do médico-chefe de nosso hospital. E que gostei disso por muitos e muitos anos. – observei meus pais se levantarem às pressas e irem embora do Tribunal. – Mas acontece que o Dr. David, médico-chefe de nosso hospital, – fazia questão de repetir o nome e cargo, para que ninguém jamais se esquecesse dele. – jamais queria ter sua reputação manchada perante a cidade, e perante o seu cargo. Portanto, jamais assumimos o nosso relacionamento.

“E em meio uma de nossas discussões, David prometeu se divorciar, mas me pediu um tempo para que ele pudesse se organizar. Enquanto isso, continuaríamos a nos encontrar às escondidas, e eu arrumaria uma nova namorada para despistar possíveis boatos a nosso respeito. E assim fiz, meus caros jurados.

Fui até o conhecido bordel de nossa cidade, porque queiram vocês ou não, o bordel de nossa cidade continua ativo e por sinal, muitíssimo frequentado, inclusive por pessoas conhecidas daqui, o que não vem ao caso. Lá, neste bordel, Mr. Richard, que está presente neste recinto, indicou-me Marrie, também prostituta de lá – mais uma vez, os gritos de espanto, menos de seu noivo, que permaneceu me encarando e segurando a mão de sua noiva. – para ser minha nova namorada. Como sempre trabalhara com o rosto coberto, devidas às queimaduras que tinha por toda a face, retiradas há alguns anos por uma reconstrução de face, ninguém nunca a reconheceria fora dali. E foi assim que fiz. Levei Marrie embora daquele bordel para ser minha namorada de mentirinha.

No entanto, desde o primeiro dia, - as lágrimas começaram escorrer. – Marrie sempre fora a minha mulher. Desde o primeiro dia em que busquei essa mulher que também está diante de vocês, eu não consegui mais amar David. Eu não consegui mais ser o mesmo com ele, porque ela já havia tomado conta daquilo que um dia eu chamei de coração.

Marrie vocês conhecem bem como ela é. Ela é exatamente como parece ser. É esta mulher que conseguiu criar essa beleza esplêndida, em meio a tantas cicatrizes, é a mulher que fez o Sr. Brian voltar a sorrir, a ouvir música; Marrie foi a pessoa que me mostrou o que é um dia feliz. Eu não sabia qual era o valor de um xampu até o dia em que ela me pediu um de presente.

Então como deixar essa mulher ser feliz pelas metades? Como amar esta mulher pelas metades? Porque o pouco que ela me dera, me fez completo. Me fez conhecer um lado meu que eu mal sabia que existia. Me fez ter valores, me fez ser feliz, e, acima de qualquer coisa, me provou que o único anjo que existe nesta face da Terra é ela e somente ela, e não eu.

Eu falhei muitas vezes com Marrie e sei que foi isso que nos afastou. Que foi isto que me fez perde-la para outra pessoa. E se querem saber, não, ela jamais me pediu para que eu o matasse. Eu sabia tudo o que ela passara na mão dele, e não é preciso mais que dois olhos para ver o que ela passou na mão deste homem. Este homem tirou até o útero de Marrie. E quando eu tive a oportunidade, sim, eu tirei a vida dele.

Porque uma vida não se mata apenas com a falência dos órgãos. Uma vida se mata quando se tira a oportunidade de uma outra pessoa ser feliz, de viver, de fazer aquilo que gosta. Eu sinceramente pouco me importo com o resultado deste Júri, porque também já me considero morto. Nunca mais poderei exercer a Medicina, e mesmo que saia daqui livre, terei de viver o resto de meus anos escondido, pois existem pessoas aí fora que querem me matar, e provavelmente vão acabar conseguindo.

O que quero dizer a vocês, é que hoje foi o dia em que eu escolhi me abrir perante a minha cidade. Ontem foi o dia em que perdi tudo, e o que mais me impressionou foi o fato de continuar vivo, de continuar respirando, e de ainda ter que lidar com a minha consciência por todos os maus atos que já fiz.

Não me sinto culpado pela morde de “ele”. Ele morreu porque tinha morrer, e se eu o matei naquela sala de cirurgia foi porque ele mereceu. Não me considero Deus, nem algo perto desta Santidade, mas sou ser humano e vi o desespero nos olhos da minha mulher quando ela soube que ele estava de volta. Eu fiz o que devia ser feito. Se por isso serei condenado, cumprirei a minha pena.

Só não quero que me enxerguem como um homem mal. Não é possível que do dia para a noite eu deixe de ser o “Doutor-Anjo” e passe a ser o “Doutor-Demônio”. Pois nesta mesma sala de cirurgia em que matei “ele”, também salvei muitas pessoas. Talvez alguma delas sejam conhecida de vocês, talvez não. Posso ter usado a minha mão para um homicídio, contudo, nunca faltei com a minha obrigação de salvar vidas.

Eu não quero uma segunda chance de vocês. Eu só queria esta oportunidade para dizer a vocês e Marrie, que eu me assumi e não tenho mais nada a esconder de ninguém.”

Após a minha fala, advogado e promotor discutiram por alguns minutos, e logo houve o recesso para a decisão.

Foram três longas horas de espera, de cansaço, pois permaneci em pé e algemado, à espera de uma sentença que seria tão óbvia como a que recebera no dia anterior.

Enfim, me chamaram para voltar ao salão do Tribunal. Entrei cabisbaixo e sem esperanças, e não busquei os olhos de Marrie no meio da plateia. Seria muita humilhação vê-la chorando enquanto sairia dali preso.

Não tenho hoje conhecimento jurídico algum, e tinha muito menos ainda naquela época, portanto, a única frase que eu entendi da longa sentença fora que o Júri me declarara inocente.

Enquanto os policiais tiravam as minhas algemas, não consegui ter nenhuma reação. Não sorri, não gritei, não pulei, apenas fiquei estático, incrédulo, sem entender como era possível que aquelas pessoas me considerassem inocente. Como era possível eu perder o meu diploma de Médico sendo julgado por Médicos e continuar sendo cidadão de direitos perante pessoas que, a meu ver na época, de nada entendiam da vida.

- Por quê? Por que eles me absolveram? – perguntei ao meu advogado.

- Dr. Paul, eu não faço a menor ideia. Acho que eles entenderam você. Mas você sabe que mesmo declarado inocente aqui, você vai correr perigo para sempre nesta cidade. Você precisa ir embora para a fazenda mais uma vez.

- Tudo bem. Antes eu só gostaria de dar uma palavrinha...

- Comigo, Sr. Paul? – respondeu-me Marrie, friamente. – Não tenho mais nada para conversar com o Sr. Vim aqui por simples solidariedade à sua pessoa, e o que você fez? Expôs-me diante toda a cidade. Apenas lhe digo, se era este o seu plano para acabar com o meu noivado, foi muito fraco! Como você tem o costume de dizer, “passar bem”.
E ao se aproximar de mim, ao invés de me dar um beijo na bochecha, Marrie com delicadeza, beijou-me o canto da boca e, antes de ir embora, deu-me uma piscadela mostrando-me uma coisa: eu precisaria de um bom plano para tê-la de volta. Mas que ainda havia esperança.

quarta-feira, 12 de março de 2014

PAUL E MARRIE - Cap. 22: O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

(FOTO: http://www.flickr.com/photos/cnj_oficial/9401169867/sizes/z/in/photostream/)


O Conselho Federal de Medicina me julgaria na segunda-feira, e o Tribunal do Júri aconteceria na terça. Coincidência ou não, o meu destino seria traçado em apenas 48 horas.

Meu advogado me esclarecera tudo: quais eram as minhas chances, como deveria agir e o que deveria falar para comover os jurados, os médicos da banca, mas que infelizmente minhas chances eram muito pequenas. Como se eu já não soubesse disso.

Teria uma longa semana pela frente, semana a qual só me trouxe as péssimas recordações destes últimos anos de minha vida. Entretanto, fora esta semana de reflexão que me fizera enxergar que Marrie nunca fora culpada pelo meu crime. Marrie realmente só exigira um xampu de mim. E mais nada.

A polícia chegou a fazenda juntamente com o meu despertador: 4 horas da manhã. Apesar da viagem de carro até a capital do país, onde o Conselho Federal tinha sede, seria longa e para minha segurança, deveríamos chegar antes da mídia e dos possíveis comparsas do “ele”.

Até o momento, não havia sinal nem de meus pais, nem de meu advogado, e imaginei que eles já estivessem na capital a minha espera. Desde que quando chegara à fazenda não tivera contato com nenhum deles. Era como se não mais eu estivesse fugindo do mundo, mas o mundo estivesse fugindo de mim agora.

Fui algemado antes de entrar no camburão, e assim segui a longa viagem até o Conselho Federal de Medicina. Estava sendo tratado como um grande criminoso foragido, que apenas entregara o seu endereço no dia do julgamento para se livrar de uma prisão provisória. Ninguém me enxergava como um herói, como um homem corajoso que retirara do mundo um sociopata capaz de dominar uma cidade inteira, tendo como nome apenas o pronome “ele”. Não fora assim que eu imaginara o desfecho da minha reputação: como um homem que matou o traficante para salvar a puta. A puta que agora iria se casar com o novo “eu” contratado para o hospital.

Assim que chegamos, uma pequena surpresa: meu advogado já estava na porta me esperando, juntamente com Marrie. E nada de meus pais. Não entendi porque Marrie estava ali. Não depois de toda a nossa última conversa, e principalmente pelo fato de ela não ser médica e não poder participar do julgamento. E por falar em médico, comecei a me questionar onde estaria David naquele momento, pois pensava que ele seria uma pessoa que não perderia por nada a chance de me ver ser julgado pelo Conselho Federal.

- Seus pais não puderam vir, Dr. Paul. Mas lhe garanto que eu farei todo o possível para que você permaneça sendo médico e trabalhando no hospital. – disse meu advogado, cumprimentando-me desajeitado, por causa de minhas algemas.

Marrie já estava chorando.

- Eu sei que eu não posso entrar, Paul, mas ao mesmo tempo eu sei que você precisa saber que ainda existe alguém lutando por você. E mesmo você não merecendo, eu estou aqui torcendo para que tudo dê certo. – fez uma pequena pausa. – E também estou aqui para lhe dizer que do fundo do meu coração, Paul... eu sinto muito. Eu sinto muito por tudo, e se pudesse, eu preferia estar sendo julgada no seu lugar.

Olhei a mão de Marrie e lá estava um novo anel de noivado, ainda maior do que o que ela jogara no meio do campo. Pelo visto estava tudo bem entre ela e o noivo.

- Não foi culpa sua, Marrie. Eu sempre soube disso. Não foi culpa sua. – disse enquanto subia algumas escadas de forma forçada, pois os policiais me empurravam para que eu entrasse logo. Marrie gritou e eu ouvi enquanto estava de costas para ela:

- Ontem à noite eu coloquei um sonífero na bebida de David! Ele vai dormir por uns dias... e não vai atrapalhar você desta vez. Boa sorte, bonitão! Deus lhe abençoe.

Não pude deixar de rir ao imaginar Marrie cometendo esta pequena maldade, um tanto quando necessária para que eu pudesse entrar menos nervoso naquela sala. Mais uma vez Marrie salvando meu dia, sem precisar de muito. Aquilo me fez entrar com esperança para o julgamento.

Julgamento este que fora completamente arbitrário. Nunca havia presenciado antes um julgamento administrativo, e minha decepção foi tamanha, porque ali nem eu, nem meu advogado fomos possibilitados de falar. Apenas ouvimos, ouvimos e ouvimos até a prolação da sentença.

Nenhum dos médicos da banca queria saber o porquê, como e quando aquilo aconteceu. Nenhuma das enfermeiras presentes no dia foi requisitada como testemunha, porque ali nada daquilo era necessário. Estávamos diante de uma mesa que só leu laudos e perícias, constatando que sim, o DNA encontrado nas vísceras do cadáver era o meu, que os órgãos foram esmagados por uma mão esquerda do tamanho da minha, e que sim, eu estava completamente sóbrio, no exercício de minha função quando isto aconteceu. E em quarenta minutos de sessão, tudo estava decido: Eu, Paul Robert Mars, não poderia mais exercer a Medicina. Em quarenta minutos de leitura de laudos e em três segundos de sentença, a minha carreira acabou.

E como meu endereço fora revelado à polícia para que eu comparecesse ao primeiro julgamento, saí dali, mais uma vez, escoltado e algemado, no entanto, o meu destino agora era a prisão de minha cidade.

Fui incapaz de olhar na direção de Marrie, ainda me esperando do lado de fora do Conselho Federal. Quando entrei no camburão para ir embora, olhei de relance para sua direção e vi que estava de joelhos, aos prantos, implorando provavelmente para que revessem a minha decisão a alguns dos médicos que estavam na banca. Fomos embora sem que eu pudesse ver o que aconteceu.

Só quando troquei minha roupa e deixei meu relógio e sapatos e fui para minha cela é que percebi o rumo que as coisas estavam tomando. Durante toda a viagem minha mente dera um pane e não conseguira pensar em mais nada que não fosse Marrie tirando a roupa na minha frente na fazenda e me dizendo que eu iria perder a Medicina, e que isso não seria o pior de minha vida. Que o pior já estava acontecendo há muito tempo.

Talvez fosse por isso que eu não estivesse tão assustado, nem tampouco decepcionado. Alguns poderiam dizer que “a ficha ainda não tinha caído” para mim, mas a verdade é que mais uma vez eu estava sendo o Paul conformado de sempre. Porque uma parte de meu cérebro estava se sentindo plenamente agradecida pelo fato de não quererem ouvir a minha versão, de não quererem saber que Marrie era uma prostituta a qual eu me apaixonei, e, principalmente, assim eu não precisaria contar a ninguém que eu era um homossexual que se refugiou em um amor comprado. E que de repente se tornou verdadeiro.

É, meu caro leitor, eu precisei ficar dentro de uma cela imunda, cheirando a suor e mijo, para que descobrisse que o meu amor por Marrie era verdadeiro. Era a única certeza que tinha ali dentro. Porque mesmo diante de todos os fatos, de todos os meus pesadelos tornando-se realidade, uma coisa dentro de mim não mudava: eu não me sentia arrependido por ter matado “ele”. Eu não me sentira arrependido por ter matado ele com as minhas mãos nenhum dia.

Eu, por mais ódio e revolta que sentisse pela minha atitude, arrependimento não me acontecera, porque Marrie não teria mais problemas. Marrie, no final das contas, estava bem.

Ela teve a oportunidade de seguir a sua vida fora da prostituição, dera continuidade a cafeteria de Sr. Brian e agora estava noiva de um homem que certamente estava morrendo de amores por ela. Afinal, quem não estaria? Eu, que era homossexual desde os 17 anos de idade, que estava preso, e provavelmente passaria umas boas décadas condenados após o dia seguinte estava, imagina então alguém que pudesse amá-la com o coração aberto? Imagina então um médico que não conhecia ninguém na cidade, tê-la apresentada pelos olhos de Marrie. Pelas mãos de Marrie. Pela voz de Marrie.

Se eu que estava completamente perdido, um dia tivera a chance de deitar-me ao seu lado, imagina então alguém que se ajoelhasse diante dela e a lhe pedisse a companhia até a morte?

Ele sim seria um homem feliz. E por mais que me doesse, se o noivo de Marrie fosse feliz ao lado dela, Marrie automaticamente seria feliz também. Logo, logo, Marrie haveria de me esquecer. Assim como os meus pais já haviam feito.

Agachado, sentindo a textura úmida daquela parede sem reboco, enquanto ouvia por cima os diálogos dos outros presos, chegou um policial e me chamou para a grade da cela:

- E aí, “bonitão”, há há há. – disse, satirizando o apelido que Marrie me dera. – A ruivinha tatuada trouxe um cafezinho para você. – e entregou-me uma xícara com o pires.


Era o café que Marrie sempre me levava no meio dos plantões. Amargo, com um pedaço de chocolate derretido. “Para me dar forças pro dia que estaria por vir.”

sábado, 8 de março de 2014

PAUL E MARRIE - Cap. 21: E agora?

(FOTO: http://www.flickr.com/photos/raizdedois/2641596846/sizes/z/in/photolist-52qSHd-5eQUMP-5jC1XV-5GpXoS-5XfHSN-61G7eT-699esr-6kCtvp-6rTHZu-6x5GdX-6yAiMX-6Ag985-6LwKBQ-6V1oQB-6V1qbM-6V1rdT-6V5uv9-6V5xGj-72phxx-73gCeW-7ajRaF-7w99pH-9vkjNX-btnnSb-bNQXTv-8bd71W-9vok8N-8bs2Rv-98zCBV-bJPVnn-bvVb6o-bvVanU-9DDXWK-9yx8WE-drkyvH-drkySc-drkJqJ-8khE6J-8kesW4-aYG2hR-8kesDn-c4Wyzm-8khEQb-8ketnX-9Dh9tE-eqnFHt-eqnFz4-9uQUAy-9rc9AY-9mdTSa-8mCCWj/)

‘E agora?’ Essas eram as duas palavras que me acompanharam enquanto voltava para a casa naquela carroça balançando. Minha Marrie estava noiva de um babaca, e eu a beira de perder o direito de exercer a Medicina. E agora?

Senti vontade de fugir, mas sabia que não tinha nenhum lugar em mente. Porque na verdade, a minha intenção era sumir, desaparecer, evaporar. Nada mais faria sentido para mim depois dos dois julgamentos que estariam por vir. Não havia escapatória para um assassinato a sangue frio. Ainda mais por um assassinato em vão, já que Marrie agora estava noiva.

Quis também conversar com o empregado que me levava de volta, mas sequer sabia o nome dele. Não sabia o nome de ninguém que morava naquela casa, simplesmente os odiava, odiava o lugar e tudo o que o rodeava. Eu queria voltar para os braços de Marrie.

E após as longas três horas de viagem, eu me sentia exausto, como se tivesse ido a pé para aquela viagem frustrada. Desci da carroça e sentei-me nas escadas que davam para o casarão. Precisava fumar.

A cada tragada, observava atentamente o cigarro se esvaindo, sendo consumido pelas minhas sucções precisas, contínuas. Ali chorava todas as lágrimas que não conseguia derramar.

- Então além de parar de fazer a barba, agora você fuma também, Sr. Paul?

Estava muito concentrado na fumaça que expirava, e demorou um pouco até que meu cérebro me avisasse que aquela voz era a de Marrie. Assim que percebi o que estava acontecendo, saltei-me em pé e tossia a fumaça a qual me engasguei.

- Como... você...

- Eu o segui, bonitão. Sei que não devia, mas eu o segui. – os olhos de Marrie estavam cheios de lágrimas e sua voz engasgada. – Mas você me seguiu primeiro. Você foi até mim na cafeteria. E se você foi até mim, é porque ainda há esperanças.

Olhei para as pernas de Marrie e vi que estavam imundas de terra. Seus pés estavam descalços, e Marrie segurava os sapatos em suas mãos. Em seguida, olhei ao redor e vi que não encontrava nenhum veículo por perto.

- Você me seguiu a pé? – perguntei, espantado.

- Eu não tenho carro, Sr. Paul, nem um cavalo. Mas não se incomode comigo, bonitão. Eu só queria ver você. – Marrie chorava muito. – Eu reconheci seus olhos de longe, Paul, quando vi você naquela carroça sabia que você estava lá por mim.

- Bem, você se enganou, eu fui até a cidade porque...

- Basta, Paul! – Marrie fez um sinal de pare com as duas mãos. – Basta! Eu estou aqui porque esta é a sua última chance de poder ter um futuro comigo...

- Lógico que é a última chance, Marrie. – ri cinicamente. – Você está noiva, não é mesmo? Então se o babaca aqui não te aceitar de volta, você se casa com o babaca da cidade. Quem é ele, hein? O filho do Sr. Brian? Há há há.

- Você está equivocado, Sr. Paul. Em todos os sentidos.

- Ah, é, Sra. Marrie? Então explique-se melhor, porque para mim, este anel em seu dedo é um anel de noivado.

As lágrimas não paravam de escorrer pelos olhos de Marrie.

- Sim, Sr. Paul, este anel em meu dedo é um anel de noivado. Mas não estou noiva do filho de Sr. Brian, ele nunca teve filhos. Estou noiva do médico que entrou para substituir o seu cargo, Sr. Paul. E não vim aqui para tentar ser aceita por você de volta, eu vim aqui para saber se você ainda me ama. Porque se você me amar, quem irá aceita-lo de volta, com ou sem essa merda de direito de exercer Medicina, sou eu.

Não disse palavra alguma, apenas deixei meus olhos também encherem-se de lágrimas. Meu coração batia doído. Marrie me encarava, esperando uma resposta.

- O problema é este anel, Paul? –dizia Marrie, trêmula, enquanto o arrancava do dedo com brutalidade e o jogava no meio do campo. – Pronto, não tem mais nenhum anel de noivado aqui.

E para a minha surpresa, ali, em frente à fazenda onde estava morando, Marrie também jogou os seus sapatos, seu vestido, sutiã e calcinha no meio do campo.

- Pronto, Paul, - os olhos de Marrie já estavam esgotados e vermelhos. – pronto. Agora não existe mais nada em mim que o meu coração. E a minha tatuagem. Eu só quero uma resposta de você. Diz para mim se é para eu espera-lo, se ainda posso ter esperança de que a gente vai vencer tudo isso junto.

- Marrie, se vista! Os empregados lhe verão!

- FODA-SE, PAUL! FODA-SE OS EMPREGADOS! FODA-SE O DAVID! FODA-SE “ELE” E TODA AQUELA PORRA DE CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA! FODA-SE! FODA-SE O MEU NOIVADO E OS SEUS PAIS, ESSA SUA BARBA NOJENTA E ESSE SEU BAFO DE CIGARRO!!! SÓ ME DIGA SE É PARA EU IR EMBORA PENSANDO EM VOCÊ, OU SE É PARA EU IR EMBORA ESQUECENDO VOCÊ! ME RESPONDE AGORA, PAUL! AGORA!

- Marrie...

- Eu nunca pedi para você matar ninguém, Paul... – Marrie tampava a boca para tentar segurar o choro. – eu nunca pedi para você fazer aquilo... Por quê você fez aquilo, Paul?? Eu nunca pedi para ser salva, ai meu Deus do céu, Paul, eu só pedi um xampu para você. Desde o dia em que te conheci, eu só pedi um xampu para você... – Marrie caiu aos prantos, de joelhos, na grama da fazenda.

- Marrie, eu quero que você vá embora daqui. Eu fui bem claro na carta que lhe mandei. Seja feliz em seu casamento.

Marrie ergueu a cabeça, e em meio àqueles belíssimos ruivos cabelos, eu a ouvi apunhalar meu coração:

- Sim, Paul, eu vou ser muito feliz em meu casamento. Porque eu não sou uma covarde e hipócrita como você. Eu lutei até o fim pelo o que o meu coração me pediu. Eu não tive medo, não tive honra, muito menos dignidade. Apenas fui o que minha integridade sempre transpareceu. Você, Paul, pelo contrário, nunca vai conseguir ser feliz. Porque você nunca se aceitou, nunca se conheceu, e nunca procurou nada por isso. Foi muito mais fácil se esconder atrás de um cigarro, de uma sala de cirurgia, de uma fazenda como esta. Eu me prostituí à vida inteira, já apanhei, tenho minhas cicatrizes, perdi a chance de ser mãe e fui humilhada de todas as maneiras possíveis. Mas eu conheci o seu amor e vi que nada daquilo tinha importância, porque eu sabia o que realmente valia a pena. Para mim o que realmente vale a pena é chegar em casa e ter alguém para se dividir o dia. Só isso conta no final. Eu espero sinceramente que você perca esse direito de exercer Medicina, e passe a exercer o controle da sua vida sozinho.

Todos os empregados nos observavam. Todos pareciam muito assustados com toda a situação, e principalmente com todas aquelas cicatrizes de Marrie. Eu olhava para eles envergonhado, meio que pedindo uma ajuda para que alguém me dissesse o que eu deveria fazer naquele momento.

Marrie, ainda nua, se aproximou de mim com dificuldade, e vi que seus pés estavam machucados. Achei que fosse ganhar um último beijo, como forma de despedida, mas o que recebi foi um tapa na cara. Um belo e forte tapa na cara.

- Isto é por todas as vezes que você me abandonou. – Marrie desferiu outro tapa em mim, com mais força ainda. – E isto foi por não ter me defendido quando David me atacou. – Mais e mais tapas iam surgindo, cada vez mais forte e mais rápidos. – E isto foi por ter me tirado do seu apartamento, e por ter me feito a mulher mais feliz do mundo, só para me deixar de novo depois. E isto, - agora Marrie me dera chute, bem entre minhas pernas. – foi pelo ‘passar bem’ que me escreveu na carta. Passar bem, você, Sr. Paul! Passar bem você!

Agora quem estava caído no chão era eu, sentindo dor, e mais ainda remorso por toda dor que causei na vida daquela pequena mulher. Sabia que não deveria ter agido daquela maneira, sabia que aquela era a hora de abrir meu coração e me deixar viver o grande amor que sentia por Marrie. Mas estava bloqueado, ainda estava sendo guiado pelo meu ego, pelos bons costumes, e pela culpa que colocara em Marrie pela morte do “ele”. Ainda era um covarde.

Marrie procurou suas roupas no meio da grama, e as vestiu sem pensar em se arrumar ou se sentir um pouco mais limpa. Sem pegar os sapatos, ou o seu anel, foi embora da fazenda da mesma maneira em que havia chegado: a pé.

Quando consegui me sentar, caí aos prantos. Chorei alto, gritei, esperneei, e tentei correr atrás de Marrie, em vão. Era tarde demais.

Assim que cheguei de volta à fazenda, fumei um maço de cigarro. Um atrás do outro. Sem parar. E a cada vez que me lembrava de Marrie me chamando de covarde, era mais um motivo para tragar mais uma vez. Até que fui surpreendido por um dos empregados:

- Sr. Paul, telefone para o senhor.

Era meu advogado. Os dois julgamentos estavam marcados. Enfim chegara a hora do grande dia.