(FOTO: http://www.flickr.com/photos/46929568@N04/4474420906/sizes/m/in/photostream/)
Assim que entrei no salão de entrada pela fazenda,
deixei-me levar pela euforia. Abracei meus empregados, gritava que tinha sido
absolvido, que recebera uma segunda chance da sociedade, e que agora estava
pronto para lutar e ter de volta o amor de minha Marrie.
A maioria dos empregados se assustara com o meu
carinho e felicidade repentina, pois não era um hábito meu ser sorridente desde
que chegara à fazenda. Todos eles, com exceção do menino que me levara até a
cidade, pareciam se comover com a minha absolvição e sorriam para mim enquanto
eu pulava de alegria.
Quando todos me deixaram a sós, lá estava ele, o
empregado que me levara à cidade, em pé, esperando que eu me acalmasse para que
pudesse conversar comigo:
- Sr. Paul, se me permite uma opinião...
- Claro, meu rapaz, hoje você pode falar o que
quiser... nada vai tirar a minha alegria! – respondi, convidando-o com a mão
para que se sentasse ao meu lado.
- É que...
- Vamos, pode falar, não precisa ter medo. Voltei a
ser o “Doutor-Anjo”, só que sem licença para exercer a Medicina. – continuei brincando.
- Eu não tenho nada a ver com a vida do Sr., muito
menos com essa tal de Marrie que nós fomos atrás na cidade, até porque eu nem
conheço ela a fundo. Mas, quando ouvi o Sr. comentar agora que iria lutar pelo
amor dela, minha consciência pediu para que eu conversasse com o Sr., pois não
acho certo isso não...
- Por quê? Não tenho o direito de lutar por ela?
Logo ela, que eu amo tanto?
- Olha, meu chefe, eu mal sei ler e escrever, e
nunca tive vontade alguma de frequentar a escola. O que quero dizer é que não
tenho estudo nenhum, e às vezes nenhum saber para lhe dizer o que vou dizer. Mas
a meu ver, você TINHA o direito de lutar por ela. Tinha no sentido de não ter
mais. Porque eu acho um absurdo o Sr. resolver ir agora atrás dela. Agora que
ela arrumou um chapa legal, o camarada é Doutor..
- Eu também sou.
- Não, Sr. Paul. O Sr. não é doutor mais. E o Sr.
nunca se noivou com Marrie. Acho injusto, depois de tudo o que ela passou,
poxa, ela tirou a roupa aqui na frente de todo mundo, e o Sr. mandou ela
embora. Não sei, chefe, eu posso estar muito errado, mas para mim, se você a
ama de verdade, você deve deixar essa tal de Marrie casar e ser feliz.
De imediato, nada respondi. Sabia que aquele ser
tinha razão.
- Até porque, Sr. Paul, o que o Sr. poderia oferecer
a ela, a esta altura do campeonato? Você pode ter ser sido julgado inocente,
mas ainda tem gente atrás de você. Logo, logo, você vai ter que ir embora
daqui, não vai poder arrumar um emprego, vai ter que viver fugindo. E ela acabou
de reformar a cafeteria, tem o próprio negócio, não sei ela merece passar o
resto da vida fugindo com você. Peço desculpas se eu disse alguma coisa que te
ofendeu, mas é o que eu acho.
Era o que ele achava, e foi o que eu acabei acatando
como certo. Realmente, o que eu, um ex-médico com a licença cassada, fugitivo
por ter matado um traficante, tinha a oferecer para Marrie? Doeu saber que eu
havia perdido o jogo de vez, mas sabia que esta era a única solução: se eu
amasse Marrie de verdade, eu a deixaria se casar e ser feliz.
E por mais seis meses vivi a vida que estava levando
antes de ir ao Tribunal: bebendo de manhã, à tarde e à noite, lendo os livros
da biblioteca de meu avô, perambulando pelos enormes cômodos do casarão,
contando quantos passos dava de um lado até o outro, andando a cavalo, entre
outras coisas mais.
Nestes seis meses, nenhuma notícia de Marrie e nem
de meus pais. Eu passava o dia inteiro me sentindo abandonado, como se eu
tivesse morrido e alguém tivesse esquecido de me avisar. Havia horas em que a
minha única vontade era morrer, para ver se assim eu encontrava a paz.
E passados esses meses, estava eu, sentado na
escada, à espera de Larry, meu fiel empregado, trazer cigarros da cidade para
mim, quando o avistei chegando e gritando, antes mesmo que descesse da carroça:
- Sr. Paul, é hoje! É hoje, Sr. Paul! É hoje o
casamento de sua Marrie!
Senti meu coração bater e parar, e um arrepio subiu
pela minha nuca.
- A Igreja está sendo arrumada, flores, tapete
vermelho e tudo mais! Acho que se o Sr. sair daqui agora, dá tempo de chegar e
ver a cerimônia, mas o Sr. vai ter que ir de carro.
- Eu não vou assistir Marrie se casar com outro
homem, Larry. Estou muito bem aqui.
- Sr. Paul, eu acho que o Sr. deveria ir sim. Nem
que fosse para ver Marrie pela última vez. E desencanar, sabe, o Sr. fica aí o
dia inteiro, nessa tristeza toda, acho que o Sr. deveria ir.
E fui. Fui porque realmente estava louco para ver
Marrie, e porque Larry conseguiu arrumar um carro emprestado para que eu fosse
até a cidade. Fazia mais de um ano que eu não dirigia, e eu corria tanto, que
sentia um frio na barriga como se estivesse em uma montanha russa. Estava vivendo um ‘trhilling’.
Ao chegar na cidade, a grande decepção: quando
entrei na Igreja, esta ainda estava vazia, e como estava barbudo e usando um
chapéu, mais uma vez ninguém me reconheceria. Foram longos os minutos até que
os convidados começassem a chegar e até que Marrie entrasse no altar.
Vi Marrie
entrar na Igreja. Nem em meus pensamentos ela conseguira ficar tão bela, tão
esplêndida, tão intocavelmente perfeita como ela estava naquele vestido. Seus
cabelos levemente ondulados deixaram que o véu de noiva pairasse delicadamente
sobre sua testa.Mesmo estando de longe, eu poderia sentir suas mãos suarem,
pedindo que alguém a ajudasse a perder aquele nervosismo, aquela ansiedade de
viver o momento mais importante de sua vida. E agora era a hora de desfrutar
aquele momento.
Pois
aquele era seu sonho, estar ali, diante da sociedade, mostrando que era digna e
católica como qualquer outra pessoa poderia ser. Mr. Richard estava a acompanhando,
como um pai faria com a sua filha, e era completamente perceptível em seus
olhos o orgulho que estava sentindo de Marrie.
Marrie entrou
com ensaiados passos largos, suaves, como se ninguém pudesse ouvir seus
pequeninos pés tocarem o tapete vermelho. Tinha em seus lábios um sorriso
incrivelmente trêmulo, verdadeiro, emocionado. Carregava com força o buquê de
rosas vermelhas, provavelmente colhidas por ela mesma.
Observei
Marrie com lágrimas nos olhos, sem fazer qualquer esforço para tentar
impedi-las de cair. Aquela mulher tão linda e tão pequena era a mulher da minha
vida, era o amor que me fizera mudar o que os homens pensavam ser imutável.
Cheguei tão perto de seus cabelos que consegui sentir o cheiro de seu xampu.
Era o xampu que lhe dera de presente anos atrás, e que sorrindo, um dia ela me
alegara que só o usaria em ocasiões especiais.
Aqueles milésimos
de segundos de olhos fechados sentindo o cheiro de seu cabelo duraram horas em
meu subconsciente. Até que abri os olhos e continuei observando Marrie chegar
até o seu futuro marido.E fui embora. Porque não precisavam do meu amor naquele
lugar.
Quando
saí da Igreja, deparei-me com uma poça d’água e fiquei alguns instantes
observando o meu reflexo naquela água um tanto quanto suja.
Eu tinha
olhos grandes. Olhos redondos, grandes e observadores. E o que mais me
perturbava era ver ali, em frente aquela Igreja, o que realmente estava
acontecendo comigo. Era algo além de ver, era entender que o que me incomodava
tanto não era o fato de minha carteira estar vazia, de eu não ter minha própria
casa ou porque nunca mais poderia exercer a Medicina. O que me perturbava, o
que me incomodava, o que confesso que me doía profundamente era encarar-me só.
Era encarar-me só ao lado de aproximadamente 450 pessoas, em uma cidade de 800 mil habitantes, em um país que pouco me importava quantas pessoas o habitavam. Porque ninguém me interessava, ninguém além daquela mulher que estava se casando ali, ao meu lado.
Ainda conseguia sentir o cheiro daquele xampu vagabundo que lhe dera de presente, no seu 23º aniversário. E poderia ter lhe dado uma pedra, um alfinete, ou até mesmo uma bomba, e teria certeza de que Marrie arrumaria alguma forma de levar consigo para o altar.
Porque Marrie me amava. Porque Marrie me amava desde o 1º dia em que me vira, em que apenas ela me vira. E marrie via-me como ninguém. Marrie enxergava todos os meus lados negros, doentios, malucos, e os amava, os idolatrava, os desejava perto dela. Marrie desde o primeiro dia sabia que eu seria o homem de sua vida. O Paul de sua vida. O seu marido, o seu amigo, o seu namorado, o seu amante, o seu colega, quando quisesse. Quando precisasse. Quando pedisse, ou melhor, assim que pedisse.
Mas a realidade não fora essa. Eu só oferecera durante os nossos poucos anos de relacionamento o meu lado negro. E mais nada. Só entreguei à minha pequena Marrie parte do meu lado obscuro para que ela amasse e se satisfizesse com ele. E assim Marrie o fez.
Entretanto,
não bastava para mim ver aquela mulher ser feliz com tão pouco. Tentei dar-lhe,
milhões de vezes, algo que pudesse contar sem vergonha alguma para outras
pessoas, algo completamente diferente do que estava acostumada a receber.
Porém, acabei fazendo de Marrie minha esposa, minha namorada, minha amiga,
minha amante e minha colega nas horas em que eu a desejava, a chamava. Assim
que a chamava. Fiz dela tudo, menos uma mulher amada.
Eu estraguei a vida de Marrie. Durante estes poucos anos, aos poucos, com longos intervalos de tempo, eu destruí, sem entender o porquê, o pouco de vida que restava naquela mulher desorientada, esperançosa e triste.
Não entendi o que dava errado, o motivo pelo qual não conseguia transmitir meu amor para ela, falar de amor com ela, ser amor perto dela. Cheguei à conclusão que entre nós, o amor não bastava. Que entre nós, o amor acabara tornando-se algo supérfluo, banalizado pelas nossas mentiras.
Lembrei-me
também de Marrie na fazenda, indagando-me se eu realmente a amava, se eu era
homem o suficiente para deixar meu orgulho de lado e amá-la de verdade. Eu, meu
caro leitor, não tinha qualquer dúvida a respeito dos meus sentimentos, apenas
não tinha maturidade suficiente para saber se meu orgulho era mais importante
que o meu amor. Se o meu orgulho era mais importante que minha Marrie.
E hoje, no tal grande dia, eu derramara lágrimas ao vê-la entrando, usando o xampu que eu lhe dera, para casar com outro homem. Um grande médico, exatamente como eu fora há anos.
Pensei em ir até um bar, beber uísque até ficar insuportavelmente bêbado e voltar para a fazenda, onde poderia me afundar em uma eterna melancolia.
Porém, não saí do lugar. Pois aqueles olhos, aqueles mesmos grandes, redondos e observadores olhos, perceberam algo que até então eu não via antes. As minhas conclusões estavam erradas, o nosso amor era suficiente para manter-nos felizes, eu que fora cego e tolo o suficiente para enxergar as coisas da maneira como o meu orgulho e covardia queriam, da maneira que minha autossuficiência emocional pedia.
Eu não me deixei amar aquela mulher. Eu guardei todo aquele amor dentro do meu peito para que a perdesse e voltasse a ser o Paul de sempre, o Paul que sabia sorrir, mas que não sabia ser feliz.
Tinha ciência de tudo agora. Do quanto eu errara, falhara e perdera. Tinha ciência de que agora era tarde demais e que só provaria ter um real amor por Marrie se a deixasse ser feliz com o seu futuro marido. Também tinha ciência de que Paul não seria mais Paul se não tivesse Marrie ao seu lado. Tinha ciência de que um ser humano prestes a fazer 36 anos não muda do dia para a noite, e ainda tinha os meus instintos egoístas. E por estes instintos que dei meia volta e entrei na Igreja novamente.
Voltei para buscar Marrie. Entrei pelo mesmo tapete vermelho que ela entrara e com uma determinação no olhar, fui atrás de Marrie como um caçador vai atrás de sua presa.
Todos os convidados, padrinhos e madrinhas olharam e minha direção. Depois o padre, e enfim, os noivos. Marrie arregalara seus olhos de tal maneira que pensei que fosse desmaiar ali mesmo. Mas Marrie firmou-se em pé, e me disse:
- Você é
um filho da puta de um egoísta, Sr. Paul! Como tem coragem de estar aqui?
- Você
tem razão, Marrie... – disse, tremendo os lábios. – Eu sou um filho da puta de
um egoísta, e amo você demais para deixar você se casar com outro homem. Eu dei
esse xampu para que você fosse minha mulher. E eu estou aqui para que você a
seja.
Marrie, como eu, tremeu os lábios, e não disse nada. Também não esperei que respondesse, peguei-a no colo e coloquei-a em meus ombros como se estivesse sequestrando-a. Fechei a cara para todos os convidados, inclusive para o noivo, e saí da Igreja com a noiva em meus braços.
E em nenhum momento pensei em desistir, porque ao ter Marrie comigo, vi que ela sorria. E aquele sorriso... era de perdão.