(FOTO: http://www.flickr.com/photos/cnj_oficial/9401169867/sizes/z/in/photostream/)
O Conselho Federal de Medicina me julgaria na segunda-feira,
e o Tribunal do Júri aconteceria na terça. Coincidência ou não, o meu destino
seria traçado em apenas 48 horas.
Meu advogado me esclarecera tudo: quais eram as minhas
chances, como deveria agir e o que deveria falar para comover os jurados, os
médicos da banca, mas que infelizmente minhas chances eram muito pequenas. Como
se eu já não soubesse disso.
Teria uma longa semana pela frente, semana a qual só me
trouxe as péssimas recordações destes últimos anos de minha vida. Entretanto,
fora esta semana de reflexão que me fizera enxergar que Marrie nunca fora
culpada pelo meu crime. Marrie realmente só exigira um xampu de mim. E mais
nada.
A polícia chegou a fazenda juntamente com o meu despertador:
4 horas da manhã. Apesar da viagem de carro até a capital do país, onde o
Conselho Federal tinha sede, seria longa e para minha segurança, deveríamos
chegar antes da mídia e dos possíveis comparsas do “ele”.
Até o momento, não havia sinal nem de meus pais, nem de meu
advogado, e imaginei que eles já estivessem na capital a minha espera. Desde
que quando chegara à fazenda não tivera contato com nenhum deles. Era como se
não mais eu estivesse fugindo do mundo, mas o mundo estivesse fugindo de mim
agora.
Fui algemado antes de entrar no camburão, e assim segui a
longa viagem até o Conselho Federal de Medicina. Estava sendo tratado como um
grande criminoso foragido, que apenas entregara o seu endereço no dia do
julgamento para se livrar de uma prisão provisória. Ninguém me enxergava como
um herói, como um homem corajoso que retirara do mundo um sociopata capaz de
dominar uma cidade inteira, tendo como nome apenas o pronome “ele”. Não fora
assim que eu imaginara o desfecho da minha reputação: como um homem que matou o
traficante para salvar a puta. A puta que agora iria se casar com o novo “eu”
contratado para o hospital.
Assim que chegamos, uma pequena surpresa: meu advogado já
estava na porta me esperando, juntamente com Marrie. E nada de meus pais. Não
entendi porque Marrie estava ali. Não depois de toda a nossa última conversa, e
principalmente pelo fato de ela não ser médica e não poder participar do
julgamento. E por falar em médico, comecei a me questionar onde estaria David
naquele momento, pois pensava que ele seria uma pessoa que não perderia por
nada a chance de me ver ser julgado pelo Conselho Federal.
- Seus pais não puderam vir, Dr. Paul. Mas lhe garanto que
eu farei todo o possível para que você permaneça sendo médico e trabalhando no
hospital. – disse meu advogado, cumprimentando-me desajeitado, por causa de
minhas algemas.
Marrie já estava chorando.
- Eu sei que eu não posso entrar, Paul, mas ao mesmo tempo
eu sei que você precisa saber que ainda existe alguém lutando por você. E mesmo
você não merecendo, eu estou aqui torcendo para que tudo dê certo. – fez uma
pequena pausa. – E também estou aqui para lhe dizer que do fundo do meu
coração, Paul... eu sinto muito. Eu sinto muito por tudo, e se pudesse, eu
preferia estar sendo julgada no seu lugar.
Olhei a mão de Marrie e lá estava um novo anel de noivado,
ainda maior do que o que ela jogara no meio do campo. Pelo visto estava tudo
bem entre ela e o noivo.
- Não foi culpa sua, Marrie. Eu sempre soube disso. Não foi
culpa sua. – disse enquanto subia algumas escadas de forma forçada, pois os
policiais me empurravam para que eu entrasse logo. Marrie gritou e eu ouvi
enquanto estava de costas para ela:
- Ontem à noite eu coloquei um sonífero na bebida de David!
Ele vai dormir por uns dias... e não vai atrapalhar você desta vez. Boa sorte,
bonitão! Deus lhe abençoe.
Não pude deixar de rir ao imaginar Marrie cometendo esta
pequena maldade, um tanto quando necessária para que eu pudesse entrar menos
nervoso naquela sala. Mais uma vez Marrie salvando meu dia, sem precisar de
muito. Aquilo me fez entrar com esperança para o julgamento.
Julgamento este que fora completamente arbitrário. Nunca
havia presenciado antes um julgamento administrativo, e minha decepção foi
tamanha, porque ali nem eu, nem meu advogado fomos possibilitados de falar.
Apenas ouvimos, ouvimos e ouvimos até a prolação da sentença.
Nenhum dos médicos da banca queria saber o porquê, como e
quando aquilo aconteceu. Nenhuma das enfermeiras presentes no dia foi
requisitada como testemunha, porque ali nada daquilo era necessário. Estávamos
diante de uma mesa que só leu laudos e perícias, constatando que sim, o DNA
encontrado nas vísceras do cadáver era o meu, que os órgãos foram esmagados por
uma mão esquerda do tamanho da minha, e que sim, eu estava completamente
sóbrio, no exercício de minha função quando isto aconteceu. E em quarenta
minutos de sessão, tudo estava decido: Eu, Paul Robert Mars, não poderia mais
exercer a Medicina. Em quarenta minutos de leitura de laudos e em três segundos
de sentença, a minha carreira acabou.
E como meu endereço fora revelado à polícia para que eu
comparecesse ao primeiro julgamento, saí dali, mais uma vez, escoltado e
algemado, no entanto, o meu destino agora era a prisão de minha cidade.
Fui incapaz de olhar na direção de Marrie, ainda me
esperando do lado de fora do Conselho Federal. Quando entrei no camburão para
ir embora, olhei de relance para sua direção e vi que estava de joelhos, aos
prantos, implorando provavelmente para que revessem a minha decisão a alguns
dos médicos que estavam na banca. Fomos embora sem que eu pudesse ver o que
aconteceu.
Só quando troquei minha roupa e deixei meu relógio e sapatos
e fui para minha cela é que percebi o rumo que as coisas estavam tomando.
Durante toda a viagem minha mente dera um pane e não conseguira pensar em mais nada
que não fosse Marrie tirando a roupa na minha frente na fazenda e me dizendo
que eu iria perder a Medicina, e que isso não seria o pior de minha vida. Que o
pior já estava acontecendo há muito tempo.
Talvez fosse por isso que eu não estivesse tão assustado,
nem tampouco decepcionado. Alguns poderiam dizer que “a ficha ainda não tinha
caído” para mim, mas a verdade é que mais uma vez eu estava sendo o Paul
conformado de sempre. Porque uma parte de meu cérebro estava se sentindo
plenamente agradecida pelo fato de não quererem ouvir a minha versão, de não
quererem saber que Marrie era uma prostituta a qual eu me apaixonei, e,
principalmente, assim eu não precisaria contar a ninguém que eu era um
homossexual que se refugiou em um amor comprado. E que de repente se tornou
verdadeiro.
É, meu caro leitor, eu precisei ficar dentro de uma cela
imunda, cheirando a suor e mijo, para que descobrisse que o meu amor por Marrie
era verdadeiro. Era a única certeza que tinha ali dentro. Porque mesmo diante
de todos os fatos, de todos os meus pesadelos tornando-se realidade, uma coisa
dentro de mim não mudava: eu não me sentia arrependido por ter matado “ele”. Eu
não me sentira arrependido por ter matado ele com as minhas mãos nenhum dia.
Eu, por mais ódio e revolta que sentisse pela minha atitude,
arrependimento não me acontecera, porque Marrie não teria mais problemas.
Marrie, no final das contas, estava bem.
Ela teve a oportunidade de seguir a sua vida fora da
prostituição, dera continuidade a cafeteria de Sr. Brian e agora estava noiva
de um homem que certamente estava morrendo de amores por ela. Afinal, quem não
estaria? Eu, que era homossexual desde os 17 anos de idade, que estava preso, e
provavelmente passaria umas boas décadas condenados após o dia seguinte estava,
imagina então alguém que pudesse amá-la com o coração aberto? Imagina então um
médico que não conhecia ninguém na cidade, tê-la apresentada pelos olhos de
Marrie. Pelas mãos de Marrie. Pela voz de Marrie.
Se eu que estava completamente perdido, um dia tivera a
chance de deitar-me ao seu lado, imagina então alguém que se ajoelhasse diante
dela e a lhe pedisse a companhia até a morte?
Ele sim seria um homem feliz. E por mais que me doesse, se o
noivo de Marrie fosse feliz ao lado dela, Marrie automaticamente seria feliz
também. Logo, logo, Marrie haveria de me esquecer. Assim como os meus pais já
haviam feito.
Agachado, sentindo a textura úmida daquela parede sem
reboco, enquanto ouvia por cima os diálogos dos outros presos, chegou um
policial e me chamou para a grade da cela:
- E aí, “bonitão”, há há há. – disse, satirizando o apelido
que Marrie me dera. – A ruivinha tatuada trouxe um cafezinho para você. – e entregou-me
uma xícara com o pires.
Era o café que Marrie sempre me levava no meio dos plantões.
Amargo, com um pedaço de chocolate derretido. “Para me dar forças pro dia que
estaria por vir.”

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