quarta-feira, 12 de março de 2014

PAUL E MARRIE - Cap. 22: O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

(FOTO: http://www.flickr.com/photos/cnj_oficial/9401169867/sizes/z/in/photostream/)


O Conselho Federal de Medicina me julgaria na segunda-feira, e o Tribunal do Júri aconteceria na terça. Coincidência ou não, o meu destino seria traçado em apenas 48 horas.

Meu advogado me esclarecera tudo: quais eram as minhas chances, como deveria agir e o que deveria falar para comover os jurados, os médicos da banca, mas que infelizmente minhas chances eram muito pequenas. Como se eu já não soubesse disso.

Teria uma longa semana pela frente, semana a qual só me trouxe as péssimas recordações destes últimos anos de minha vida. Entretanto, fora esta semana de reflexão que me fizera enxergar que Marrie nunca fora culpada pelo meu crime. Marrie realmente só exigira um xampu de mim. E mais nada.

A polícia chegou a fazenda juntamente com o meu despertador: 4 horas da manhã. Apesar da viagem de carro até a capital do país, onde o Conselho Federal tinha sede, seria longa e para minha segurança, deveríamos chegar antes da mídia e dos possíveis comparsas do “ele”.

Até o momento, não havia sinal nem de meus pais, nem de meu advogado, e imaginei que eles já estivessem na capital a minha espera. Desde que quando chegara à fazenda não tivera contato com nenhum deles. Era como se não mais eu estivesse fugindo do mundo, mas o mundo estivesse fugindo de mim agora.

Fui algemado antes de entrar no camburão, e assim segui a longa viagem até o Conselho Federal de Medicina. Estava sendo tratado como um grande criminoso foragido, que apenas entregara o seu endereço no dia do julgamento para se livrar de uma prisão provisória. Ninguém me enxergava como um herói, como um homem corajoso que retirara do mundo um sociopata capaz de dominar uma cidade inteira, tendo como nome apenas o pronome “ele”. Não fora assim que eu imaginara o desfecho da minha reputação: como um homem que matou o traficante para salvar a puta. A puta que agora iria se casar com o novo “eu” contratado para o hospital.

Assim que chegamos, uma pequena surpresa: meu advogado já estava na porta me esperando, juntamente com Marrie. E nada de meus pais. Não entendi porque Marrie estava ali. Não depois de toda a nossa última conversa, e principalmente pelo fato de ela não ser médica e não poder participar do julgamento. E por falar em médico, comecei a me questionar onde estaria David naquele momento, pois pensava que ele seria uma pessoa que não perderia por nada a chance de me ver ser julgado pelo Conselho Federal.

- Seus pais não puderam vir, Dr. Paul. Mas lhe garanto que eu farei todo o possível para que você permaneça sendo médico e trabalhando no hospital. – disse meu advogado, cumprimentando-me desajeitado, por causa de minhas algemas.

Marrie já estava chorando.

- Eu sei que eu não posso entrar, Paul, mas ao mesmo tempo eu sei que você precisa saber que ainda existe alguém lutando por você. E mesmo você não merecendo, eu estou aqui torcendo para que tudo dê certo. – fez uma pequena pausa. – E também estou aqui para lhe dizer que do fundo do meu coração, Paul... eu sinto muito. Eu sinto muito por tudo, e se pudesse, eu preferia estar sendo julgada no seu lugar.

Olhei a mão de Marrie e lá estava um novo anel de noivado, ainda maior do que o que ela jogara no meio do campo. Pelo visto estava tudo bem entre ela e o noivo.

- Não foi culpa sua, Marrie. Eu sempre soube disso. Não foi culpa sua. – disse enquanto subia algumas escadas de forma forçada, pois os policiais me empurravam para que eu entrasse logo. Marrie gritou e eu ouvi enquanto estava de costas para ela:

- Ontem à noite eu coloquei um sonífero na bebida de David! Ele vai dormir por uns dias... e não vai atrapalhar você desta vez. Boa sorte, bonitão! Deus lhe abençoe.

Não pude deixar de rir ao imaginar Marrie cometendo esta pequena maldade, um tanto quando necessária para que eu pudesse entrar menos nervoso naquela sala. Mais uma vez Marrie salvando meu dia, sem precisar de muito. Aquilo me fez entrar com esperança para o julgamento.

Julgamento este que fora completamente arbitrário. Nunca havia presenciado antes um julgamento administrativo, e minha decepção foi tamanha, porque ali nem eu, nem meu advogado fomos possibilitados de falar. Apenas ouvimos, ouvimos e ouvimos até a prolação da sentença.

Nenhum dos médicos da banca queria saber o porquê, como e quando aquilo aconteceu. Nenhuma das enfermeiras presentes no dia foi requisitada como testemunha, porque ali nada daquilo era necessário. Estávamos diante de uma mesa que só leu laudos e perícias, constatando que sim, o DNA encontrado nas vísceras do cadáver era o meu, que os órgãos foram esmagados por uma mão esquerda do tamanho da minha, e que sim, eu estava completamente sóbrio, no exercício de minha função quando isto aconteceu. E em quarenta minutos de sessão, tudo estava decido: Eu, Paul Robert Mars, não poderia mais exercer a Medicina. Em quarenta minutos de leitura de laudos e em três segundos de sentença, a minha carreira acabou.

E como meu endereço fora revelado à polícia para que eu comparecesse ao primeiro julgamento, saí dali, mais uma vez, escoltado e algemado, no entanto, o meu destino agora era a prisão de minha cidade.

Fui incapaz de olhar na direção de Marrie, ainda me esperando do lado de fora do Conselho Federal. Quando entrei no camburão para ir embora, olhei de relance para sua direção e vi que estava de joelhos, aos prantos, implorando provavelmente para que revessem a minha decisão a alguns dos médicos que estavam na banca. Fomos embora sem que eu pudesse ver o que aconteceu.

Só quando troquei minha roupa e deixei meu relógio e sapatos e fui para minha cela é que percebi o rumo que as coisas estavam tomando. Durante toda a viagem minha mente dera um pane e não conseguira pensar em mais nada que não fosse Marrie tirando a roupa na minha frente na fazenda e me dizendo que eu iria perder a Medicina, e que isso não seria o pior de minha vida. Que o pior já estava acontecendo há muito tempo.

Talvez fosse por isso que eu não estivesse tão assustado, nem tampouco decepcionado. Alguns poderiam dizer que “a ficha ainda não tinha caído” para mim, mas a verdade é que mais uma vez eu estava sendo o Paul conformado de sempre. Porque uma parte de meu cérebro estava se sentindo plenamente agradecida pelo fato de não quererem ouvir a minha versão, de não quererem saber que Marrie era uma prostituta a qual eu me apaixonei, e, principalmente, assim eu não precisaria contar a ninguém que eu era um homossexual que se refugiou em um amor comprado. E que de repente se tornou verdadeiro.

É, meu caro leitor, eu precisei ficar dentro de uma cela imunda, cheirando a suor e mijo, para que descobrisse que o meu amor por Marrie era verdadeiro. Era a única certeza que tinha ali dentro. Porque mesmo diante de todos os fatos, de todos os meus pesadelos tornando-se realidade, uma coisa dentro de mim não mudava: eu não me sentia arrependido por ter matado “ele”. Eu não me sentira arrependido por ter matado ele com as minhas mãos nenhum dia.

Eu, por mais ódio e revolta que sentisse pela minha atitude, arrependimento não me acontecera, porque Marrie não teria mais problemas. Marrie, no final das contas, estava bem.

Ela teve a oportunidade de seguir a sua vida fora da prostituição, dera continuidade a cafeteria de Sr. Brian e agora estava noiva de um homem que certamente estava morrendo de amores por ela. Afinal, quem não estaria? Eu, que era homossexual desde os 17 anos de idade, que estava preso, e provavelmente passaria umas boas décadas condenados após o dia seguinte estava, imagina então alguém que pudesse amá-la com o coração aberto? Imagina então um médico que não conhecia ninguém na cidade, tê-la apresentada pelos olhos de Marrie. Pelas mãos de Marrie. Pela voz de Marrie.

Se eu que estava completamente perdido, um dia tivera a chance de deitar-me ao seu lado, imagina então alguém que se ajoelhasse diante dela e a lhe pedisse a companhia até a morte?

Ele sim seria um homem feliz. E por mais que me doesse, se o noivo de Marrie fosse feliz ao lado dela, Marrie automaticamente seria feliz também. Logo, logo, Marrie haveria de me esquecer. Assim como os meus pais já haviam feito.

Agachado, sentindo a textura úmida daquela parede sem reboco, enquanto ouvia por cima os diálogos dos outros presos, chegou um policial e me chamou para a grade da cela:

- E aí, “bonitão”, há há há. – disse, satirizando o apelido que Marrie me dera. – A ruivinha tatuada trouxe um cafezinho para você. – e entregou-me uma xícara com o pires.


Era o café que Marrie sempre me levava no meio dos plantões. Amargo, com um pedaço de chocolate derretido. “Para me dar forças pro dia que estaria por vir.”

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