quarta-feira, 19 de março de 2014

PAUL E MARRIE - Cap. 23: O TRIBUNAL DO JÚRI

(FOTO: http://www.flickr.com/photos/pablo_costa/4965086018/sizes/z/in/photostream/)


O engraçado foi que aquela xícara de café teve o efeito inverso no meu corpo: assim que a terminei, caí no sono, e só acordei quando o Sol nasceu. Era o dia do meu segundo julgamento, em que seria julgado não mais pelos meus colegas de profissão, mas sim pelas pessoas que na época eu classificava como “comuns”.

Mais uma vez entrei no camburão algemado, e para a minha surpresa, a cidade toda estava ali para assistir meu julgamento. Uma aglomeração de mulheres com cartazes levantados, todos os meus colegas do hospital, e, à frente de todos, estava Mr. Richard, fumando o seu charuto, e me esperando descer do carro da polícia.

Em meio a toda aquela confusão, só depois que desci do camburão é que percebi que as mulheres que estavam a postos segurando cartazes, eram as prostitutas de Mr. Richard, e consequentemente, as amigas de Marrie. Todas estavam gritando um hino, que me fez rir antes de subir as escadas do Tribunal:

- INO! INO! INO! DOUTOR- ANJO NÃO É ASSASSINO! INO! INO! INO! DOUTOR ANJO NÃO É ASSASSINO! – todas em coro, clamando Justiça em meu nome.

Marrie, obviamente, não estava junto com elas, mas assim que entrei no salão do Tribunal do Júri, senti o cheiro de seu xampu. Lá estava ela, observando a minha entrada com muitas lágrimas nos olhos, ao lado de seu noivo.

Pude então observá-lo com calma. Assim como eu, era alto, forte, e tinha boa aparência, porém anos mais jovem, eu poderia dizer que ele tinha a idade de Marrie. Seu cabelo estava brilhando, milimetricamente penteado, sem nenhum fio fora do lugar. Enquanto caminhava ao lado dos policiais, ele me olhava de cima embaixo, como se estivesse fazendo um raio-X de quem era o ex-alguma coisa de sua atual Marrie.

Sentei, bufando, na cadeira de réu que fora posta para mim. Eu sabia que também seria condenado naquele Júri e que provavelmente meu futuro próximo seria acordar e dormir naquela cadeia imunda, e receber os cafés de Marrie. Pensei em que o seu noivo pensava a nosso respeito, se ele se sentia confortável em estar ali, no meu julgamento, ou se estava lá para se vangloriar em ver seu adversário perder a mulher que ama para sempre, ao vivo e a cores.

Fui despertado de meus pensamentos, pois o julgamento começara.
E ao contrário do que ocorrera no Conselho Federal de Medicina, lá sim foram ouvidas as testemunhas, no caso os meus colegas de hospital, e fiquei completamente incrédulo com o que foi dito ali: que eu sempre tivera um comportamento estranho, agressivo, que não era a primeira vez que falava em assassinato, e que não, que ninguém mais confiaria na minha capacidade médica e ética para exercer minha profissão.

Eu praticamente carregara no colo todos aqueles profissionais que estavam prestando depoimento. Dei aula para alguns, auxiliei alguns outros dentro do hospital, mas, para todos eles, eu sempre os tratara como amigos. E ali, naquele momento, apenas para não correrem o risco de serem acusados, inventaram mentiras sobre o que aconteceu naquele dia para se verem livres de mim. De repente, todo mundo se esqueceu que um dia eu fora o “Doutor-Anjo”.

Meus pais também estavam presentes, juntamente com a plateia, em lado oposto ao que estava Marrie. Minha mãe estava arrumada como se estivesse indo a um baile de gala, e meu pai tinha o sapato lustrado, assim como o do noivo de Marrie. Os dois estavam ali apenas para manterem as aparências e tentarem mostrar que éramos uma família tradicional e respeitada na cidade. Contudo, todos pareciam também ter se esquecido disso.

E então, chegara a minha vez de falar. Meu advogado me orientara a dizer que eu fora induzido por Marrie, que ela durante todo o tempo que moramos juntos implantara esta ideia na minha cabeça, e que no dia de realizar esta cirurgia eu estava sem dormir devido a uma crise histérica que Marrie tivera. Resumindo, eu deveria fazer com a minha pequena o que os meus colegas estavam fazendo comigo. Era para ser um “salve-se quem puder”.

Ainda algemado, tirei meus óculos do rosto antes de começar a falar:

- Ai ai... eu mal sei por onde começar. – meus olhos encheram-se de lágrimas ao ver Marrie boquiaberta me assistindo. – Mas a verdade é uma só: eu matei sim aquele homem, como já está provado pelos laudos médicos. Eu coloquei sim as minhas mãos em suas entranhas para que ele perdesse a vida. O que eu não posso dizer a vocês, jurados, é que eu sempre tive comportamento agressivo, ou que eu ameacei os meus colegas de profissão. Isso não, isso eu nunca fiz e não vou mentir aqui. Para falar a verdade, acho que seria muito melhor se eu tivesse apenas um desvio de personalidade. A minha história começa muito antes deste dia da sala de cirurgia...

Fechei os olhos para me revelar, e assim fiquei nos primeiros segundos quando disse:

- Eu, Dr. Paul Robert, também conhecido como “Doutor-Anjo”, era homossexual e tinha um relacionamento estável com o Dr. David, médico-chefe de nosso hospital. – não esperei que os gritos de espanto cessassem para que continuasse com o meu depoimento. – Sim, eu queria dizer a todos que estão presentes aqui que eu já dei e já comi o cú do médico-chefe de nosso hospital. E que gostei disso por muitos e muitos anos. – observei meus pais se levantarem às pressas e irem embora do Tribunal. – Mas acontece que o Dr. David, médico-chefe de nosso hospital, – fazia questão de repetir o nome e cargo, para que ninguém jamais se esquecesse dele. – jamais queria ter sua reputação manchada perante a cidade, e perante o seu cargo. Portanto, jamais assumimos o nosso relacionamento.

“E em meio uma de nossas discussões, David prometeu se divorciar, mas me pediu um tempo para que ele pudesse se organizar. Enquanto isso, continuaríamos a nos encontrar às escondidas, e eu arrumaria uma nova namorada para despistar possíveis boatos a nosso respeito. E assim fiz, meus caros jurados.

Fui até o conhecido bordel de nossa cidade, porque queiram vocês ou não, o bordel de nossa cidade continua ativo e por sinal, muitíssimo frequentado, inclusive por pessoas conhecidas daqui, o que não vem ao caso. Lá, neste bordel, Mr. Richard, que está presente neste recinto, indicou-me Marrie, também prostituta de lá – mais uma vez, os gritos de espanto, menos de seu noivo, que permaneceu me encarando e segurando a mão de sua noiva. – para ser minha nova namorada. Como sempre trabalhara com o rosto coberto, devidas às queimaduras que tinha por toda a face, retiradas há alguns anos por uma reconstrução de face, ninguém nunca a reconheceria fora dali. E foi assim que fiz. Levei Marrie embora daquele bordel para ser minha namorada de mentirinha.

No entanto, desde o primeiro dia, - as lágrimas começaram escorrer. – Marrie sempre fora a minha mulher. Desde o primeiro dia em que busquei essa mulher que também está diante de vocês, eu não consegui mais amar David. Eu não consegui mais ser o mesmo com ele, porque ela já havia tomado conta daquilo que um dia eu chamei de coração.

Marrie vocês conhecem bem como ela é. Ela é exatamente como parece ser. É esta mulher que conseguiu criar essa beleza esplêndida, em meio a tantas cicatrizes, é a mulher que fez o Sr. Brian voltar a sorrir, a ouvir música; Marrie foi a pessoa que me mostrou o que é um dia feliz. Eu não sabia qual era o valor de um xampu até o dia em que ela me pediu um de presente.

Então como deixar essa mulher ser feliz pelas metades? Como amar esta mulher pelas metades? Porque o pouco que ela me dera, me fez completo. Me fez conhecer um lado meu que eu mal sabia que existia. Me fez ter valores, me fez ser feliz, e, acima de qualquer coisa, me provou que o único anjo que existe nesta face da Terra é ela e somente ela, e não eu.

Eu falhei muitas vezes com Marrie e sei que foi isso que nos afastou. Que foi isto que me fez perde-la para outra pessoa. E se querem saber, não, ela jamais me pediu para que eu o matasse. Eu sabia tudo o que ela passara na mão dele, e não é preciso mais que dois olhos para ver o que ela passou na mão deste homem. Este homem tirou até o útero de Marrie. E quando eu tive a oportunidade, sim, eu tirei a vida dele.

Porque uma vida não se mata apenas com a falência dos órgãos. Uma vida se mata quando se tira a oportunidade de uma outra pessoa ser feliz, de viver, de fazer aquilo que gosta. Eu sinceramente pouco me importo com o resultado deste Júri, porque também já me considero morto. Nunca mais poderei exercer a Medicina, e mesmo que saia daqui livre, terei de viver o resto de meus anos escondido, pois existem pessoas aí fora que querem me matar, e provavelmente vão acabar conseguindo.

O que quero dizer a vocês, é que hoje foi o dia em que eu escolhi me abrir perante a minha cidade. Ontem foi o dia em que perdi tudo, e o que mais me impressionou foi o fato de continuar vivo, de continuar respirando, e de ainda ter que lidar com a minha consciência por todos os maus atos que já fiz.

Não me sinto culpado pela morde de “ele”. Ele morreu porque tinha morrer, e se eu o matei naquela sala de cirurgia foi porque ele mereceu. Não me considero Deus, nem algo perto desta Santidade, mas sou ser humano e vi o desespero nos olhos da minha mulher quando ela soube que ele estava de volta. Eu fiz o que devia ser feito. Se por isso serei condenado, cumprirei a minha pena.

Só não quero que me enxerguem como um homem mal. Não é possível que do dia para a noite eu deixe de ser o “Doutor-Anjo” e passe a ser o “Doutor-Demônio”. Pois nesta mesma sala de cirurgia em que matei “ele”, também salvei muitas pessoas. Talvez alguma delas sejam conhecida de vocês, talvez não. Posso ter usado a minha mão para um homicídio, contudo, nunca faltei com a minha obrigação de salvar vidas.

Eu não quero uma segunda chance de vocês. Eu só queria esta oportunidade para dizer a vocês e Marrie, que eu me assumi e não tenho mais nada a esconder de ninguém.”

Após a minha fala, advogado e promotor discutiram por alguns minutos, e logo houve o recesso para a decisão.

Foram três longas horas de espera, de cansaço, pois permaneci em pé e algemado, à espera de uma sentença que seria tão óbvia como a que recebera no dia anterior.

Enfim, me chamaram para voltar ao salão do Tribunal. Entrei cabisbaixo e sem esperanças, e não busquei os olhos de Marrie no meio da plateia. Seria muita humilhação vê-la chorando enquanto sairia dali preso.

Não tenho hoje conhecimento jurídico algum, e tinha muito menos ainda naquela época, portanto, a única frase que eu entendi da longa sentença fora que o Júri me declarara inocente.

Enquanto os policiais tiravam as minhas algemas, não consegui ter nenhuma reação. Não sorri, não gritei, não pulei, apenas fiquei estático, incrédulo, sem entender como era possível que aquelas pessoas me considerassem inocente. Como era possível eu perder o meu diploma de Médico sendo julgado por Médicos e continuar sendo cidadão de direitos perante pessoas que, a meu ver na época, de nada entendiam da vida.

- Por quê? Por que eles me absolveram? – perguntei ao meu advogado.

- Dr. Paul, eu não faço a menor ideia. Acho que eles entenderam você. Mas você sabe que mesmo declarado inocente aqui, você vai correr perigo para sempre nesta cidade. Você precisa ir embora para a fazenda mais uma vez.

- Tudo bem. Antes eu só gostaria de dar uma palavrinha...

- Comigo, Sr. Paul? – respondeu-me Marrie, friamente. – Não tenho mais nada para conversar com o Sr. Vim aqui por simples solidariedade à sua pessoa, e o que você fez? Expôs-me diante toda a cidade. Apenas lhe digo, se era este o seu plano para acabar com o meu noivado, foi muito fraco! Como você tem o costume de dizer, “passar bem”.
E ao se aproximar de mim, ao invés de me dar um beijo na bochecha, Marrie com delicadeza, beijou-me o canto da boca e, antes de ir embora, deu-me uma piscadela mostrando-me uma coisa: eu precisaria de um bom plano para tê-la de volta. Mas que ainda havia esperança.

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