sábado, 8 de fevereiro de 2014

PAUL E MARRIE - Cap. 17: A NOSSA CASA

(FOTO: http://www.flickr.com/photos/62693815@N03/6280553392/sizes/z/in/photostream/)

E eu nunca tivera um segundo de arrependimento desde o dia em que decidira sair de casa para morar com Marrie.

Perdera completamente o contato com os meus pais, e tive de pedir demissão na Universidade onde trabalhava para evitar maiores conflitos com David. Mas nunca houve um segundo de arrependimento em nada do que fizera desde que deixei a casa de meus pais.

Doara todas as minhas roupas de cama, pois não queria mais nada que me lembrasse de David, e comprei um sofá maior para a sala. Precisávamos de um sofá que coubesse duas pessoas deitadas. E por ali passamos quatrocentas noites assistindo televisão antes de irmos dormir. Durante todos estes quatrocentos dias juntos, nunca faltou música e flores no meu lar.

A nossa rotina era assim: trabalho de dia, à tarde, às vezes à noite também. Marrie sempre me entendia. E sempre me levava café preto no meio da madrugada quando eu estava de plantão no hospital. Sem açúcar, e com um tablete de chocolate derretido na xícara. Era a sua maneira de me dizer “boa noite”.

E não demorou muito para que conquistasse todos os médicos. O movimento na cafeteria de Sr. Brian, após a reforma, triplicou e todos sempre esperavam por algum prato novo que Marrie lançaria ao final de cada mês. Todos os pratos tinham nomes de flores. E ninguém parecia se importar com a feminilidade exaltada de Marrie. Era como se ambas se completassem.

Fiz duas viagens com Marrie: uma para a praia, outra para a neve. Queria leva-la para conhecer o mundo inteiro, e sentia que teria a vida inteira para completar este meu desejo.

É engraçado como nossa perspectiva muda quando amamos e somos amados ao mesmo tempo. Neste um ano e quase quatro meses morando juntos, vivemos o que se chama por aí de “lua de mel”. Nunca houve brigas, discussões sim, mas brigas nunca! Sempre o amor prevalecia, e eu fingia não me importar com as cantadas que Marrie começou a receber com o tempo na cafeteria de Sr. Brian. Tinha orgulho dela.

E como estava falando, ou melhor, escrevendo, a nossa perspectiva muda. Cheguei a pensar que nosso amor tornara-se inabalável, eterno, como se nada mais no mundo fosse capaz de nos separar.
Eu obviamente estava agindo como um iniciante do amor. Como um adolescente que se envolve com uma linda mulher mais velha, que de tão perfeita parece nunca ter tido um passado remoto, distante, e naqueles quatrocentos dias agi como um adolescente que acredita que sua mulher amada veio a este mundo apenas para amá-lo.

Todavia, apesar de Marrie ser anos mais nova que eu, era inegável que possuía um passado complicado.

E apesar de achar que amava Marrie incondicionalmente naquela época, meu caro leitor, infelizmente eu não conseguia tirar da cabeça as palavras de meu pai. As palavras que diziam que uma hora ou outra, minha carreira seria destruída por aquela pequena mulher. As palavras que também diziam que alguém poderia reconhecê-la.

Marrie não chegava a ter 1,70m de altura. Era pequena demais aos meus olhos para poder destruir a minha carreira. Ou a carreira de qualquer pessoa que a cercasse. Mas o medo me perseguiu por todos esses quatrocentos dias. O medo de que alguém descobrisse que o grande amor da minha vida era uma prostituta.

Ficava imaginando o que faria na hora em que todos do hospital descobrissem a verdadeira origem de Marrie. Se eu negaria o fato, se assumiria que era verdade, ou se fingiria que não sabia de nada e a deixasse para sempre. É, meu caro leitor, não sinto orgulho de escrever isto para você, mas eu era assim. Eu era um homem vendado a beira de um precipício, que insistia em não retirar a tal venda para não ser obrigado a enxergar que poderia cair a qualquer momento.

E foi então que o sábio destino obrigou-me a tirar esta venda e enxergar mais além: o problema de Marrie começara muito antes de sua prostituição. Eu estava me esquecendo do “ele”. Aquele que havia feito as cicatrizes em Marrie.

Estávamos deitados no sofá, Marrie entre as minhas pernas lendo o jornal de nossa cidade, e eu, por cima de sua cabeça, contemplava a visão que tinha da cidade pela sacada de nosso apartamento. Seria uma tarde comum de domingo, mas não foi.

De repente, senti um líquido quente se espalhar pelo sofá e por entre as minhas pernas. A princípio, pensei que pudesse ser algo que Marrie tivesse derramado no sofá, até que percebi que sua expressão estava completamente alterada: em choque, com as mãos trêmulas, as lágrimas escorriam com pressa pelo rosto da minha pequena mulher. Ela havia urinado no nosso sofá.

- Marrie, você está se sentindo bem? – eu sabia que Marrie não estava se sentindo bem, contudo percebi que não poderia ser direto naquela hora. Algo de muito sério havia acontecido.

E sem me responder, como se não tivesse ouvido qualquer palavra que saiu de minha boca, levantou-se bruscamente do sofá e foi até a cozinha buscar um pano com desinfetante.

- Marrie... – tentei mais uma vez, enquanto cercava-lhe, impedindo que passasse da cozinha para a sala novamente sem me responder primeiro.

- Paul, “ele” voltou... – as lágrimas não paravam de escorrer, e suas mãos tremiam tanto que Marrie deixou o pano e o desinfetante caírem no chão. E não demorou mais que um segundo para que ela também caísse aos prantos no chão.

Num primeiro momento, não consegui entender a frase de Marrie. Então voltei meu olhar para o sofá e vi que no jornal havia a foto de um homem estampado com a seguinte manchete: “APÓS 2 ANOS FORA DA CIDADE, “ELE” RESOLVE VOLTAR A ATERRORIZAR”.

Não consegui me ajoelhar no chão e acudir os prantos de Marrie. O espanto que sentira naquela hora falara mais alto, e eu precisava ler aquela notícia, mesmo já sabendo do que se trataria.

“Ele” não era apenas uma forma que Marrie e Mr. Richard usavam para se referir ao homem que a sequestrara machucara no começo de sua vida. “Ele” era o nome que o próprio monstro escolhera usar. Na foto preto e branco do jornal, provavelmente vinda de arquivos policiais, lá estava ele, o homem que nunca pensei em conhecer.

E ele era completamente diferente do que um dia eu havia imaginado: era alto, forte, do queixo largo e olhar marcante. Se não fosse o fato de ele ser um sociopata, qualquer um daria razão para que ele fosse o primeiro amor de Marrie. Em quesitos físicos, “ele” ganhava de mim sem qualquer esforço.

Na bochecha, havia uma profunda cicatriz, muito parecida com as do corpo de Marrie. Era por isso que ele fizera tudo aquilo com ela, era a única explicação. “Ele” com certeza sofrera este grande trauma na infância e não soubera lidar com tudo depois. Não que eu estivesse justificando a sua atitude, contudo, ali, diante da foto daquele homem, eu precisava pensar em alguma coisa para me distrair da ideia de tentar imaginar tudo o que Marrie vivera enquanto era sua posse.

Estava em pé, pasmo, com os braços abertos segurando o jornal e olhando para a foto dele. Após alguns segundos, decidi correr os olhos pela notícia.

Nada concreto por enquanto, dizia o jornal, mas estava claro que “ele” estava de volta. A periferia da cidade, e ali se incluíra o bordel de Mr. Richard, voltara a adotar o toque de recolher. “Ele” comandava quando era a hora de dormir, e quando era a hora de acordar.

E no meio de um dos depoimentos colhidos, havia um boato de que ele voltara para “acertar contas que não foram resolvidas no passado”. Se isso se referia diretamente a Marrie ou não, eu não poderia saber. Mas pela primeira vez nestes quatrocentos dias, eu parei de me importar com a minha reputação. Eu precisava proteger Marrie.

Deixei o jornal no chão e me aproximei dela com calma. Abracei-a  com força, beijei os seus cabelos, cada vez maiores e mais ruivos e lhe disse:

- Marrie, agora nós somos dois. Ninguém vai atrapalhar a nossa felicidade. Eu prometo que eu vou tirar este homem da sua vida. Quem cuida de você agora sou eu.

Eu não tinha ideia da força e nem do que aquela promessa me faria fazer. Entretanto, pela primeira vez em vários anos, eu não queria mais ser o “Doutor-Anjo”. Só queria ser o anjo que salvasse a vida de Marrie.





Um comentário:

  1. Meu Deeeus..quando penso que o casal vai ter paz...lá vem esse assombrooo...ôoooo Neguinha danada pra criar suspense...Mas estou adorando cada vez mais...Formidável, Nega!

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