(FOTO: http://www.flickr.com/photos/theworldofgrimcoda/4405140622/sizes/z/in/photostream/)
Marrie tentou fingir na manhã seguinte que nada estava
acontecendo, mas era inegável o fato de que ela não estava bem.
Fazia aproximadamente 39 graus naquela manhã, um calor
impressionante, jamais acontecido em nossa cidade. Era como se desde a chegada
de “Ele”, o tempo passasse a correr de uma maneira diferente. Era como se o
próprio tempo também estivesse se defendendo de sua chegada.
E mesmo com o calor, pela primeira vez Marrie saiu de casa
sem usar um de seus vestidos. Vestiu uma calça jeans, tênis e uma blusa de
manga comprida. Eu sabia que ela estava tentando cobrir suas cicatrizes, eu
sabia que Marrie estava aterrorizada com a ideia de que podia ser conhecida por
alguém. Tentei tranquiliza-la:
- Meu amor, você não precisa fazer isso. Ninguém vai
encontrar você. Nós nem sabemos se este boato é verdadeiro, e se ele diz
respeito a você.
- Você nunca me chamou de “meu amor”, bonitão. – os cabelos
de Marrie brilhavam com o reflexo do Sol.
- É, talvez eu precise demonstrar mais meu amor por você. Eu
nunca provei a você o quanto o meu amor é verdadeiro.
- Bonitão, - Marrie segurou meu rosto com as suas mãos. –
quando eu disse que o perdoava, eu o disse de coração. Pare de se culpar por
aquele dia. Já passou. Esqueça David e tudo o que ele já nos causou. Você mesmo
disse: agora somos um só.
Fomos para o nosso trabalho juntos e em silêncio, e enquanto
caminhávamos o nosso pequeno percurso, os gritos de David e de Marrie voltaram
a martelar o meu cérebro. Passara-se mais de um ano e eu não conseguia tirar
aquela cena de minha cabeça. Eu não conseguia esquecer o dia em que não provei
o meu amor por Marrie.
No hospital, só se falava no “Ele”. No seu retorno, no que a
cidade viria a se transformar, no perigo que ele próprio estava correndo, já
que saíra da cidade porque estava jurado de morte, e alguns outros tópicos que
não consegui ouvir. Não conseguia e nem queria prestar atenção neste tipo de
conversa, contudo o lugar de meu cérebro onde antes estava a voz de Marrie e de
David me perturbando, agora estava a foto do jornal mostrando a beleza inigualável
do homem que tirou o útero e estragou a vida de minha mulher.
Não demorou muito, e logo já havia esquecido-me de toda a
minha manhã, enquanto operava um apêndice inflamado de uma emergência que
chegara logo cedo. Dentro da sala de cirurgia não existia medo, insegurança,
problemas. Ali eu era apenas o “Doutor-Anjo”, o médico cujas mãos jamais
tremiam.
E antes que pudesse terminar de tirar as luvas, após essa
cirurgia habitual, escutei nos autos-faltantes:
- Atenção, “Doutor-Anjo”, atenção: paciente baleado com
grave risco de morte na sala 02. Paciente gravemente ferido na sala dois.
Corri a passos largos até chegar à sala 02, que era a poucos
metros de onde estava. Em poucos segundos as enfermeiras me vestiam com a
roupa, touca, luvas, e instantaneamente já estava pronto para entrar em ação de
novo. E enquanto terminava de amarrar a máscara, aproximei-me da cama.
E por coincidência ou não do destino, se é algum desses dois
malditos existem, quem estava deitado ali era justamente ele. “Ele”. Sim, meu
caro leitor, “ele” chegara gravemente ferido no hospital, pois fora baleado horas
atrás, e não conseguira achar nenhum médico que o atendesse de uma forma
ilegal, assim como uma vez eu fizera com Mr. Richard. Ele demorara a pedir
socorro médico, pois sabia que dali sairia preso. Ou morto.
Imediatamente minhas mãos começaram a tremer e todos na sala
de cirurgia perceberam o meu desequilíbrio.
- “Doutor-Anjo”,...
- Este h-homem, este homem é o responsável pelas cicatrizes
de Marrie. – as lágrimas escorriam sem parar e as lentes dos meus óculos
embaçaram. “Ele” voltou a cabeça para mim, e mesmo agonizando disse:
- Não interessa quem eu sou, doutor. Você não é juiz para
julgar meus atos, muito menos Deus. Você tem que tirar essa porra de bala
dentro de mim. Se você não tirar, você é um homem morto. Anda logo.
A raiva me consumiu. Retirei com brutalidade as luvas, a touca,
e toda a roupa de higiene médica que era obrigado a usar. Eu suava muito e
sentia calafrios ao mesmo tempo, como se estivesse com febre alta. Todavia, a
única febre que sentia ali, naquele minuto, era de ódio.
- “Doutor-Anjo”, pelo amor de Deus, acalme-se! É melhor... –
disse uma das enfermeiras, nem sequer me lembro de quem.
- É melhor nada. É melhor a gente sair daqui. O assunto tem que
ser resolvido entre o “Doutor-Anjo” e “Ele”. Nós devemos deixa-los a sós. –
disse Susan, a médica anestesista.
- Susan, você está louca? Precisamos operar este homem!
- Não, nós precisamos ficar nesta sala enquanto o DR. PAUL
OPERA ESTE HOMEM! ELE É O ANJO AQUI... ELE PODE NÃO SER DEUS, MAS ELE É UM
ANJO! E SE ELE ACHAR QUE ESTE HOMEM DEVE MORRER, EU VOU FICAR AQUI DENTRO E VOU
APOIA-LO. ELE DESTRUIU A VIDA DE MARRIE. – berrava Dra. Susan.
De repente, todos ficaram agitados na sala, menos eu. Estava
paralisado, tremendo dos pés a cabeça de ódio, e só escutava os gritos dele
agonizando e o barulho do ventilador da sala. Muita coisa começou a passar pela
minha cabeça: a promessa que fizera de proteger Marrie, o dia em que David
tentou estupra-la, meus pais me olhando enquanto saía de casa, a sensação que
era passar a língua por cima das cicatrizes de Marrie enquanto fazia amor com
ela, a ausência de útero no seu corpo.
E em meio aos meus devaneios, não percebi que todos que estavam
na sala, sem exceção, não saíram dali. Mas viraram-se de costas para o paciente
e para mim. A decisão da vida dele agora estava em minhas mãos.
Era a hora de decidir quem eu queria ser: “Doutor-Anjo” ou o
Paul de Marrie. Infelizmente, naquela altura do campeonato, eu não tinha compatibilidade
para aquelas duas posições. Ou era uma, ou era a outra.
E confesso a você, meu caro leitor, não foi fácil deixar as
minhas asas de lado, mas eu as deixei. Eu deixei as minhas asas de lado por
Marrie.
Peguei o bisturi com as mãos ainda sem luvas, e disse a
todos os presentes na sala:
- Eis o que vai acontecer agora: eu vou abrir o paciente, eu
vou tirar a bala deste paciente, só que por um infortúnio de Deus, ou de um
anjo de Deus, olha que ironia, meu caro “ele” – virei-me para um paciente. –
sua vida caiu nas mãos de um anjo que resolveu se aposentar. Mas como eu estava
dizendo e como irá para o nosso prontuário, este pobre paciente não irá
resistir à cirurgia.
Todos continuaram de costas para nós dois sem fazer qualquer
movimento. Entendi isso como um “sim” e comecei abrir “Ele” sem nenhuma
anestesia. Eu queria que ele sentisse toda a dor que ele fez Marrie sentir.
E após abri-lo com precisão, enfiei a minha mão dentro de
suas entranhas até que o matei antes que achasse a bala que o havia trazido até
ali. Ele gritava com força, no intuito de receber ajuda, porém sem sucesso
algum. Já havia visto muitas pessoas morrerem na minha frente, nenhuma delas
sem anestesia. Mas garanto a você, meu leitor, que aquela foi a única morte que
me fez sentir mais forte do que eu já parecia ser. Eu acabara de matar o homem
que destruíra Marrie. Literalmente com as minhas próprias mãos.
Tirei a mão de suas entranhas, segurando a bala, e o fechei,
como se tivesse feito o procedimento corretamente. Assim que “ele” parou de
gritar, todos voltaram às suas posições, como se estivessem participado de uma
cirurgia ética. As cirurgias do “Doutor-Anjo”.
Saí da sala de cirurgia sem falar nada, e quando cheguei ao
banheiro, deparei-me com a minha imagem no espelho: estava coberto de sangue.
Por toda a roupa, pelos braços, na cara, e principalmente nas mãos. Eu fedia
sangue também. Fedia o sangue dele. E só então eu me dei conta de que acabar de
cometer um homicídio e que nada mais nesse mundo poderia trazer a vida daquele
rapaz de volta.
Pensei no que Marrie acharia quando eu lhe contasse o que
fizera. Sim, porque eu não iria lhe esconder a verdade. Eu iria contar tudo para
Marrie, porque ela iria me entender. E me perdoar. Era o que Marrie fazia
sempre.
Sem raciocinar direito, saí do banheiro, coberto de sangue,
e fui em direção à cafeteria de Sr. Brian. Na porta do hospital eu me esbarrei
com David. Ele ficou apavorado ao ver minha situação.
- PAUL!!!! VOCÊ ESTÁ LOUCO? O HOSPITAL INTEIRO OUVIU OS
GRITOS DAQUELE HOMEM! VOCÊ TEM NOÇÃO DO QUE ACABOU DE FAZER?? – ele me sacudia,
e no entanto eu era incapaz de responder-lhe qualquer coisa. Sentia-me zonzo.
- Paul, eu amo você, mas se você não largar desta piranha
hoje, eu vou mandar abrir aquele corpo de novo e vou denunciar você ao Conselho
Federal de Medicina. Você está passando dos limites.
- Denuncia-me então, Dr. David. Porque eu acabei de matar o
maior monstro que esta cidade já teve. Eu quero ver quem vai me julgar culpado.
–empurrei-o e saí do hospital.
Antes que entrasse na cafeteria, Marrie já estava saindo
pela porta, desesperada ao ver minha aparência:
- Sr. Paul... o que foi...
- Marrie, eu acabei de matar “ele”.
- Você o quê?!?
- Eu matei o “ele”, Marrie. – minhas pupilas estavam
dilatadas. – Ele chegou para ser operado, e eu não o operei. Eu matei ele. Eu
matei ele. Eu...
Quando voltei meu olhar para Marrie, vi que em seus olhos
não havia uma expressão de alívio. Havia uma expressão de horror, de medo de
mim em seu rosto. Marrie começou a chorar.
- Como você pôde fazer isso, Paul? Você tem noção do que
fez? Você matou “ele”! – Marrie já estava aos prantos. – Você estragou tudo,
Paul. A nossa vida acabou.
Tentei me aproximar de Marrie, mas em vão. Ela saiu correndo
e em poucos segundos a perdi de vista. Não imaginava que tudo iria se suceder
desta na maneira.
Na minha ainda egoísta visão, eu agira como um verdadeiro
herói, que lhe livrara Marrie do grande vilão da história. Então por que ela
agira daquela maneira? Para onde ela teria ido àquela hora do dia?
Saí desnorteado e aos prantos pela rua até chegar a meu
apartamento. O que eu acabara de fazer? Como Marrie tinha coragem de me deixar
sozinho em um momento desses? Será que David realmente me denunciaria ao
Conselho Federal de Medicina?
A água do chuveiro escorria pelo meu corpo enquanto eu
tentava pensar em algo de bom que poderia acontecer no meio daquilo tudo. Contudo,
a cada pensamento que tinha, as coisas só iam ficando piores a meu ver. Eu era
um cara fodido.
Sentei no sofá da sala, que ainda estava cheirando
desinfetante em excesso por causa da urina de Marrie, e esperei por ela durante
a tarde toda. E a noite também. Senti-me a pessoa mais sozinha da face da
Terra. Depois de um ano e quatro meses morando junto com Marrie, eu não sabia
mais como era contemplar a sala daquele apartamento sem ela tagarelando próxima
a mim. Eu tinha plena certeza que ela jamais voltaria. No fundo, Marrie ainda
amava o “ele”, e não queria que ele morresse.
Conformado com a minha solidão, e exausto emocionalmente com
tudo o que acontecera, fui para o nosso quarto, e adormeci em questão de
segundos, assim que deitei na cama.
Sonhei com julgamentos, com acusações, e principalmente com
o cheiro de sangue que ficara na minha roupa. Sonhei também com o calor das
entranhas dele, com o olhar dele me implorando misericórdia, e no sonho tentava
salvá-lo, fazer de tudo, mas meus braços não me obedeciam. Minha mente queria
sua vida, entretanto o corpo movimentava para fazê-lo morrer.
Acordei assustado com o pesadelo que tivera, e que tinha
certeza que me atormentaria dali para frente.
No entanto, quando virei para o lado, Marrie estava
dormindo, completamente nua, o cabelo todo jogado para o lado, deixando suas
costas a mostra. Ali, onde havia inúmeras cicatrizes, agora havia também uma
tatuagem. Nela estava escrito: “Protegida por um Anjo”.
Lágrimas voltaram a escorrer pelos meus olhos, desta vez não
de peso na consciência. Era de alívio por saber que não importasse o que
acontecesse de ali em diante, nós dois enfrentaríamos juntos.

CADA SER NASCE COM UM "DOM" E O SEU É O DE ESCREVER : QUE ESCRITORA MARAVILHOSA E COM CERTEZA EM FUTURO PROXIMO VAI SE TORNAR CONHECIDA E RECONHECIDA PELAS EDITORAS ... E AI SOMENTE O CÉU SERÁ O LIMITE .
ResponderExcluirHOJE CHEGUEI NESTE CAPITULO 18 E SO TENHO QUE TE DAR OS MERECIDOS PARABENS , TE AMO POR ESTA E POR TODAS AS NOSSAS VIDAS , MAMAE.