(FOTO: http://www.flickr.com/photos/62693815@N03/6280553392/sizes/z/in/photostream/)
E eu nunca tivera um segundo de arrependimento desde o dia
em que decidira sair de casa para morar com Marrie.
Perdera completamente o contato com os meus pais, e tive de
pedir demissão na Universidade onde trabalhava para evitar maiores conflitos
com David. Mas nunca houve um segundo de arrependimento em nada do que fizera
desde que deixei a casa de meus pais.
Doara todas as minhas roupas de cama, pois não queria mais
nada que me lembrasse de David, e comprei um sofá maior para a sala.
Precisávamos de um sofá que coubesse duas pessoas deitadas. E por ali passamos
quatrocentas noites assistindo televisão antes de irmos dormir. Durante todos
estes quatrocentos dias juntos, nunca faltou música e flores no meu lar.
A nossa rotina era assim: trabalho de dia, à tarde, às vezes
à noite também. Marrie sempre me entendia. E sempre me levava café preto no
meio da madrugada quando eu estava de plantão no hospital. Sem açúcar, e com um
tablete de chocolate derretido na xícara. Era a sua maneira de me dizer “boa
noite”.
E não demorou muito para que conquistasse todos os médicos.
O movimento na cafeteria de Sr. Brian, após a reforma, triplicou e todos sempre
esperavam por algum prato novo que Marrie lançaria ao final de cada mês. Todos
os pratos tinham nomes de flores. E ninguém parecia se importar com a
feminilidade exaltada de Marrie. Era como se ambas se completassem.
Fiz duas viagens com Marrie: uma para a praia, outra para a
neve. Queria leva-la para conhecer o mundo inteiro, e sentia que teria a vida
inteira para completar este meu desejo.
É engraçado como nossa perspectiva muda quando amamos e
somos amados ao mesmo tempo. Neste um ano e quase quatro meses morando juntos,
vivemos o que se chama por aí de “lua de mel”. Nunca houve brigas, discussões
sim, mas brigas nunca! Sempre o amor prevalecia, e eu fingia não me importar
com as cantadas que Marrie começou a receber com o tempo na cafeteria de Sr.
Brian. Tinha orgulho dela.
E como estava falando, ou melhor, escrevendo, a nossa
perspectiva muda. Cheguei a pensar que nosso amor tornara-se inabalável, eterno,
como se nada mais no mundo fosse capaz de nos separar.
Eu obviamente estava agindo como um iniciante do amor. Como
um adolescente que se envolve com uma linda mulher mais velha, que de tão
perfeita parece nunca ter tido um passado remoto, distante, e naqueles
quatrocentos dias agi como um adolescente que acredita que sua mulher amada
veio a este mundo apenas para amá-lo.
Todavia, apesar de Marrie ser anos mais nova que eu, era
inegável que possuía um passado complicado.
E apesar de achar que amava Marrie incondicionalmente
naquela época, meu caro leitor, infelizmente eu não conseguia tirar da cabeça
as palavras de meu pai. As palavras que diziam que uma hora ou outra, minha
carreira seria destruída por aquela pequena mulher. As palavras que também
diziam que alguém poderia reconhecê-la.
Marrie não chegava a ter 1,70m de altura. Era pequena demais
aos meus olhos para poder destruir a minha carreira. Ou a carreira de qualquer
pessoa que a cercasse. Mas o medo me perseguiu por todos esses quatrocentos
dias. O medo de que alguém descobrisse que o grande amor da minha vida era uma
prostituta.
Ficava imaginando o que faria na hora em que todos do
hospital descobrissem a verdadeira origem de Marrie. Se eu negaria o fato, se
assumiria que era verdade, ou se fingiria que não sabia de nada e a deixasse
para sempre. É, meu caro leitor, não sinto orgulho de escrever isto para você,
mas eu era assim. Eu era um homem vendado a beira de um precipício, que
insistia em não retirar a tal venda para não ser obrigado a enxergar que
poderia cair a qualquer momento.
E foi então que o sábio destino obrigou-me a tirar esta
venda e enxergar mais além: o problema de Marrie começara muito antes de sua
prostituição. Eu estava me esquecendo do “ele”. Aquele que havia feito as
cicatrizes em Marrie.
Estávamos deitados no sofá, Marrie entre as minhas pernas
lendo o jornal de nossa cidade, e eu, por cima de sua cabeça, contemplava a
visão que tinha da cidade pela sacada de nosso apartamento. Seria uma tarde
comum de domingo, mas não foi.
De repente, senti um líquido quente se espalhar pelo sofá e
por entre as minhas pernas. A princípio, pensei que pudesse ser algo que Marrie
tivesse derramado no sofá, até que percebi que sua expressão estava
completamente alterada: em choque, com as mãos trêmulas, as lágrimas escorriam
com pressa pelo rosto da minha pequena mulher. Ela havia urinado no nosso sofá.
- Marrie, você está se sentindo bem? – eu sabia que Marrie
não estava se sentindo bem, contudo percebi que não poderia ser direto naquela
hora. Algo de muito sério havia acontecido.
E sem me responder, como se não tivesse ouvido qualquer
palavra que saiu de minha boca, levantou-se bruscamente do sofá e foi até a
cozinha buscar um pano com desinfetante.
- Marrie... – tentei mais uma vez, enquanto cercava-lhe,
impedindo que passasse da cozinha para a sala novamente sem me responder
primeiro.
- Paul, “ele” voltou... – as lágrimas não paravam de
escorrer, e suas mãos tremiam tanto que Marrie deixou o pano e o desinfetante
caírem no chão. E não demorou mais que um segundo para que ela também caísse
aos prantos no chão.
Num primeiro momento, não consegui entender a frase de
Marrie. Então voltei meu olhar para o sofá e vi que no jornal havia a foto de
um homem estampado com a seguinte manchete: “APÓS 2 ANOS FORA DA CIDADE, “ELE”
RESOLVE VOLTAR A ATERRORIZAR”.
Não consegui me ajoelhar no chão e acudir os prantos de
Marrie. O espanto que sentira naquela hora falara mais alto, e eu precisava ler
aquela notícia, mesmo já sabendo do que se trataria.
“Ele” não era apenas uma forma que Marrie e Mr. Richard
usavam para se referir ao homem que a sequestrara machucara no começo de sua
vida. “Ele” era o nome que o próprio monstro escolhera usar. Na foto preto e
branco do jornal, provavelmente vinda de arquivos policiais, lá estava ele, o
homem que nunca pensei em conhecer.
E ele era completamente diferente do que um dia eu havia
imaginado: era alto, forte, do queixo largo e olhar marcante. Se não fosse o
fato de ele ser um sociopata, qualquer um daria razão para que ele fosse o
primeiro amor de Marrie. Em quesitos físicos, “ele” ganhava de mim sem qualquer
esforço.
Na bochecha, havia uma profunda cicatriz, muito parecida com
as do corpo de Marrie. Era por isso que ele fizera tudo aquilo com ela, era a
única explicação. “Ele” com certeza sofrera este grande trauma na infância e
não soubera lidar com tudo depois. Não que eu estivesse justificando a sua
atitude, contudo, ali, diante da foto daquele homem, eu precisava pensar em
alguma coisa para me distrair da ideia de tentar imaginar tudo o que Marrie
vivera enquanto era sua posse.
Estava em pé, pasmo, com os braços abertos segurando o
jornal e olhando para a foto dele. Após alguns segundos, decidi correr os olhos
pela notícia.
Nada concreto por enquanto, dizia o jornal, mas estava claro
que “ele” estava de volta. A periferia da cidade, e ali se incluíra o bordel de
Mr. Richard, voltara a adotar o toque de recolher. “Ele” comandava quando era a
hora de dormir, e quando era a hora de acordar.
E no meio de um dos depoimentos colhidos, havia um boato de
que ele voltara para “acertar contas que não foram resolvidas no passado”. Se
isso se referia diretamente a Marrie ou não, eu não poderia saber. Mas pela
primeira vez nestes quatrocentos dias, eu parei de me importar com a minha
reputação. Eu precisava proteger Marrie.
Deixei o jornal no chão e me aproximei dela com calma.
Abracei-a com força, beijei os seus
cabelos, cada vez maiores e mais ruivos e lhe disse:
- Marrie, agora nós somos dois. Ninguém vai atrapalhar a
nossa felicidade. Eu prometo que eu vou tirar este homem da sua vida. Quem
cuida de você agora sou eu.
Eu não tinha ideia da força e nem do que aquela promessa me
faria fazer. Entretanto, pela primeira vez em vários anos, eu não queria mais
ser o “Doutor-Anjo”. Só queria ser o anjo que salvasse a vida de Marrie.

Meu Deeeus..quando penso que o casal vai ter paz...lá vem esse assombrooo...ôoooo Neguinha danada pra criar suspense...Mas estou adorando cada vez mais...Formidável, Nega!
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