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Aquele seria era um dia muito especial para voltar a morar na minha cidade. Entenda, meu caro, que para aqueles, que como eu, controlam com as duas mãos o seu destino, todos os dias são especiais, pois assim fizemos a nossa escolha.
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Aquele seria era um dia muito especial para voltar a morar na minha cidade. Entenda, meu caro, que para aqueles, que como eu, controlam com as duas mãos o seu destino, todos os dias são especiais, pois assim fizemos a nossa escolha.
Mas aquele, em particular,
era um dia que não conseguia controlar minha felicidade, pois 03 de Maio
tornara-se o meu dia preferido do ano.
O condomínio onde morava era
aquele tipo de comunidade onde todos os vizinhos eram solidários a qualquer
tipo de dor ou felicidade da vida dos outros. Éramos considerados um exemplo de
“família”, pois sempre que fazíamos alguma reunião, todos estavam presentes.
Todos, na teoria, eram amados e se amavam. E aquela era uma dessas reuniões.
Não por um motivo festivo,
meu caro leitor. 03 de Maio era o dia em que todos saíam uma hora mais cedo de
seus trabalhos para se reunirem na porta da casa da Sra. Camille de Ray, e sua
filha Nicolle. 03 de Maio era o dia em que se completavam três anos desde quando
o Sr. Phillip de Ray fora visto pela última vez.
Sr. Phillip era um nobre
Delegado de Polícia, famoso por sua eficiência no combate ao tráfico de drogas,
e inexplicavelmente desaparecera há três anos.
Crime sem pistas, aparentemente sem solução, fez com que a polícia do
país inteiro ficasse à sua procura de forma intermitente durante seis meses. E então,
os próprios colegas de trabalho começaram a se conformar com a ideia de que não
havia negociação com o mal, e que o Sr. Phillip provavelmente estaria enterrado
em alguma vala ou mata fechada escondida por aí.
Depois de um ano, foi então
declarada a morte de um dos mais condecorados oficiais da polícia, sendo
eternamente lembrado por sua coragem e dedicação ao serviço de seu país. Todos
prometeram eterno luto em homenagem ao colega, mas não demorou muito para que
eles se esquecessem daquele que um dia os defendera do mundo do crime.
Todos haviam se conformado e
superado a morte de Sr. Phillip, todos, menos sua filha Nicolle. É, meu caro,
Nicolle não era do tipo de mulher que se conformava fácil com alguma situação.
Acostumada a ter seus desejos realizados a vida inteira por seus pais,
conseguiu entrar no mundo da moda, e desde os treze anos investiu em uma
carreira de sucesso, até casar-se com Eric Johnson, meu ex-noivo.
Mas não se preocupe com este
pequeno detalhe, meu leitor, que logo mais tudo será devidamente explicado por
mim. Foque apenas no fato de que Nicolle era uma pessoa extremamente
persuasiva, que se intitulava sensitiva e de ouvidos abertos ao sobrenatural,
forçando sua mãe e todos os seus vizinhos a continuarem a se reunir uma vez por
ano para orarem pela a alma do pai, que na sua plena certeza, ainda estava
vivo.
Antes mesmo de desarrumar
minhas malas, estacionei meu carro em frente à casa dos de Ray, e fui de
encontro ao meu pai para fazer companhia a ele, e apreciar a oração de meus
vizinhos.
Ajoelhei-me ao seu lado, e
com muito carinho toquei sua mão com dois de meus dedos:
- Senti a sua falta, meu pai.
– cabisbaixa, abri um sorriso malicioso.
- Eu também, minha filha. – o
“filha” que meu pai pronunciava sempre carregava um ar de cinismo consigo. –
Não aguentava mais esperar estes longos dias para ter você enchendo a nossa
casa novamente.
E então, fomos surpreendidos,
aos gritos de Nicolle:
- MAS O QUE É QUE VOCÊ ESTÁ
FAZENDO AQUI?! – seus olhos expressavam toda a raiva que sentia, e mesmo
cabisbaixa, podia ter a certeza que suas pupilas estavam dilatadas. Fechei a
minha expressão.
- RESPONDA, MARINA! NÃO SE
FAÇA DE TONTA! EU NÃO QUERO SUA PRESENÇA AQUI! VÁ EMBORA DA MINHA CASA!
A-G-O-R-A! – Nicolle continuava aos berros.
- Filha, onde estão os seus
modos? Marina veio com seu pai nos prestar consolo e auxílio em nossas orações!
Orações que VOCÊ insiste em continuar mantendo! – a pobre Sra. Camille não pôde
conter as lágrimas.
Todos ali presentes estavam
horrorizados com a atitude da tão bem educada Nicolle de Ray, e ela percebeu
que seu gesto não estava sendo aprovado por nenhum dos presentes.
- SERÁ QUE VOCÊS SÃO TÃO
CEGOS A PONTO DE NÃO PERCEBEREM QUE A CULPADA DE TUDO ISSO É ELA? ELA ROUBOU O
MEU PAI DE MIM! É ELA! EU NÃO TENHO COMO PROVAR, MAS SEI QUE FOI ELA! FOI ELA,
FOI ELA... – Agora que tinha erguido minha face podia ver o quanto minhas mãos
tremiam.
- Nicolle, sei que hoje é um
dia muito triste na sua vida e de sua família. E é por este motivo que vou
relevar o que você me falou. Em respeito à sua família. Se não quer minha
presença aqui, tudo bem. Jamais foi minha intenção ofendê-la. Vou deixa-los em
paz.
- NÃO SE FAÇA DE SANTA, SUA
VACA! – agora Nicolle já estava segurando meu braço com força. – VOCÊ SÓ VAI
SAIR DAQUI QUANDO DEVOLVER O MEU PAI! EU-QUERO-MEU-PAI-DE-VOLTA! DEVOLVA ELE
PARA MIM! SUA MALDITA! –muitos tentaram apartar o que provavelmente poderia se
tornar uma agressão. Digo provavelmente, porque eu e você bem já sabemos,
aquilo para mim estava sendo a maior das diversões que poderia ter.
- Nicolle, o que mais você
quer tirar de mim? Pois você teve pai e mãe, oportunidade que não pude ter,
você sempre foi mais bonita do que eu, mais atraente do que eu, e pelo visto,
mais interessante do que eu, tanto que tive que aceitar ver você se casar com o
único homem que amei minha vida inteira e que inclusive amo até hoje, mas o
deixei ir por amor e por saber que você o faria muito mais feliz que eu. Você
sempre me humilhou na escola, sempre me maltratou, e eu sempre aceitei calada.
Agora me acusar de um crime que nunca cometi, diante de toda nossa comunidade
que considero como uma família, isso não posso aceitar. Não encoste mais suas
mãos em mim, senão serei obrigada a tomar providências a respeito!
Espere aí, meu caro leitor!
Não fora justamente no capítulo passado que eu mesma afirmei que sempre fui
amada na escola, que me destaquei e que nunca tive problemas com amiguinhos?
Pois então, partiremos do princípio que a memória de um ser humano só se
recorda daquilo que for conveniente para ele. E não é que quando despejei todas
aquelas informações, todos, sem exceções, inclusive a própria mãe da Nicolle,
acreditaram em mim?
É claro que as lágrimas que
derramei ajudaram a comovê-los, mas quem mais me agradou ouvir tudo que falei,
foi o próprio Eric, que chegara atrasado para a oração e assistira todo o
ocorrido.
Ele estava boquiaberto,
apertando a alça de sua pasta, e eu como o conhecia muito bem, sabia que seu
coração fora tocado por minhas palavras. E era justamente aquilo que precisava
ganhar naquele dia. Saí correndo aos prantos e entrei no carro para ir para
casa.
Assim que virei a rua já
liguei o som em uma música eletrônica que me fez dançar de olhos fechados.
Estacionei o carro e pedi
para que a governanta preparasse meu banho, pois me sentia exausta da viagem.
Antes que ela pudesse subir as escadas, apertei-a com um abraço caloroso e a
rodopiei pelo ar. Assim que voltei-a ao chão, abri-lhe um sorriso gentil e lhe
disse com alegria:
- Preciso abrir minhas malas,
você não vai acreditar quantos presentes trouxe para você, Luiza!
- Óh, Doutora! Só a Senhora
mesmo para se lembrar de mim por essas lonjuras que a Senhora encuca de morar.
Luiza subiu sorridente, e eu
fui até o porão matar a saudade do meu cachorrinho.
O lugar estava tão úmido e
escuro, que quem entrasse ali confundiria o cheiro dos excrementos e suor com a
morte. Eu não. Médica, cuidando de pessoas à beira da morte diariamente, sabia
que aquele cheiro era muito pior do que o da morte.
Aquele porão, escondido,
trancado e camuflado no subsolo de minha casa, possuía o pior cheiro do mundo.
Acendi todas as lâmpadas de uma só vez, e tirei de dentro da minha bolsa um
osso que se dá aos cães como recompensa.
Fui andando lentamente e
dizendo com doçura:
- Delegado Phillip...
Adivinha quem voltou para cuidar de você? Isso mesmo! Sua dona! Sua dona
voltou, venha cá me receber.
Acorrentado ao pescoço com
uma coleira de couro, Sr. Phillip, apoiado de quatro, caminhou com dificuldade,
pois estava muito machucado e assado, devido aos excrementos. Um de seus olhos
não abria devido ao inchaço, e sua boca parecia mole, o que dava a entender que
ali já faltavam muitos dentes. Cabisbaixo, chegou perto de mim e lambeu meus
calçados, como um cão faria.
- Também senti muita saudade
de você, meu amor! – disse-lhe, com entusiasmo, dando-lhe um beijo em sua
testa. – Aqui seu ossinho! É para comemorar os três anos que você está morando
com a gente.
E eu, que nunca acreditara em
Deus, estava começando a acreditar em forças sobrenaturais. Porque sim, meus
amados leitores, Nicolle tinha razão sobre mim. Eu era a culpada de tudo.
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